MINHA VIDA NO IRAQUE NOS TEMPOS DE SADDAM HUSSEIN - CAPÍTULO 7
Capítulo 7: a simpatia dos povos do Oriente Médio X a arrogância dos europeus gregos.
Trabalhar
em outro país era, por si, um enorme desafio, mesmo considerando que o nosso trabalho visa
atender aos anseios e necessidades de brasileiros, com o amparo e companheirismo de outros conterrâneos,
como era no nosso caso, naquele Iraque dos anos 1980.
O contrato
de trabalho que assinei me obrigava a cumprir a carga horária de um ano letivo
que, naquela época, contava com 180 dias de aulas. Assim sendo, tínhamos um
recesso de 30 dias em julho e as férias no mês de janeiro.
Claro que,
trabalhando numa escola encravada em pleno oásis mesopotâmico, cercada por
muros que transformavam aquele pequeno espaço num pedacinho de Brasil, com
poucas opções de lazer e sempre convivendo com um limitado círculo de amigos
com vínculos culturais, idiomáticos e identitários estreitos, tínhamos uma
rotina que, por vezes, tornava-se enfadonha. Assim sendo, a escola era a vida
da vila. Era naquele espaço que inventávamos festivais, festinhas, excursões e
tudo mais que pudesse nos afastar da monotonia.
Foi nesse
intuito que, incentivados pela minha queridíssima amiga, artista super criativa
e professora das melhores, Valéria Loest Rocha, decidimos levar nossos alunos
às ruínas do Castelo de Al Kaidir (ou Ukhaidher), localizado à 50 quilômetros
ao sudoeste da cidade sagrada de Kerbala.
Uma viagem
gostosa, na qual pudemos vislumbrar a suntuosidade daquele castelo erguido em
pleno deserto, agraciado por um oásis pequenino e rico em variadas formas de
vida, bem à sua entrada.
O inusitado
da viagem ficou a cargo da extrema vigilância dos soldados iraquianos à nossa
visita às ruínas. Minutos depois de adentrarmos ao castelo nos surpreendemos
com a “companhia” de soldados do exército iraquiano, que me abordaram e ao
nosso intérprete para averiguar as nossas intenções com aquela visita. Talvez quisessem
esconder de nossas vistas as imagens da prisão localizada nas proximidades,
destinada – segundo nosso intérprete – aos prisioneiros da guerra Irã X Iraque,
que ocorria naqueles tempos.
Para assegurar
tal suposto sigilo relativo à localização da prisão, depois da visita, os soldados embarcaram em nosso ônibus até que estivéssemos
a uma boa distância do castelo e do perímetro da prisão, obrigando-nos a fazer parte
do percurso da volta, com as cortinas do ônibus fechadas. Ordens proferidas com
voz firme, mas sem arroubos ou gritaria por parte do comandante iraquiano, de todo
modo, não nos dando espaço para questionar ou tentar burlar a regra. Afinal,
aquele não era o nosso país e, além disso, estavam devidamente armados e
escoltados por seus pares em carros oficiais que nos escoltaram, tanto pela frente,
quanto por atrás do nosso ônibus. Foi mais uma inusitada experiência para guardar
na memória e nas precárias fotos reveladas pelos filmes Kodak.
Em julho, como já salientei, tínhamos direito ao recesso de 30 dias. Podíamos vir ao Brasil. A empresa Mendes Jr. nos dava a passagem de vinda e nós bancávamos o retorno ao Iraque. A outra opção era converter o valor da passagem para viajar pelos países vizinhos ao Iraque.
Escolhemos
a segunda opção. Nossa intenção era conhecer o Estado de Israel e o Egito, mas
desistimos logo de cara. O Egito passava por convulsões políticas e Israel não
era muito viável para quem teria que retornar ao Iraque.
O motivo?
Bem, no
Iraque, inimigo mortal de Israel, TODO produto fabricado ou criado por judeus tinha
entrada proibida no país. Até a portabilidade da extinta revista Manchete, da editora
Block, ou o uso de um colar que tivesse um pingente com a estrela de David por
passageiros brasileiros, podia resultar em constrangimento e até mesmo na
deportação, naqueles casos em que o fiscal do aeroporto julgasse pertinente.
Assim sendo, ter o registro do visto de Israel no passaporte significava real impedimento para nossa entrada no Iraque. Podíamos pedir um visto avulso, concedido pelo governo israelense, mas, de todo modo nós não conseguiríamos fazer a viagem sem passar por algum país europeu – tanto na ida, quanto na volta – pois os países árabes do entorno não recebiam voos de Israel, o que encarecia muito a viagem. Preferimos não arriscar.
Eu e as
minhas amigas: Laura (professora de inglês que me deu a honra de batizar sua
filha Mariana, nascida no Amapá, onde nos reencontramos no ano de 1989, quando
me mudei para o norte do Brasil); Elisa (coordenadora e pedagoga do Ensino
Fundamental); Edna (professora de química e minha colega de quarto no hotel
56A); Maria do Carmo (Orientadora educacional do colégio Pitágoras Sifão) e
Marilene (adorável professora de Português, esposa do também adorável Tonhão,
professor de física do Colégio),
Nós seis
nos reunimos e resolvemos conhecer Istambul (Turquia), Atenas e a ilha de
Mikonos na Grécia. Foi uma viagem deliciosa, pelo menos no que se refere à
Turquia e a divertida companhia de minhas colegas de trabalho.
A Grécia me
enganou já no aeroporto, onde vi estampada a foto do genial brasileiro Egberto
Gismonti, que faria uma apresentação na capital do país por aqueles dias. Achamos,
equivocadamente, que aquele poderia ser um sinal de boa vontade e receptividade
para com as felizes, orgulhosas e iludidas conterrâneas desse genial músico brasileiro. Ledo engano!
A Grécia é lindíssima, esplendorosa, transbordando histórias, monumentos, arquiteturas milenares... por onde quer
que passássemos. Atenas era um convite ao lúdico, ao conhecimento histórico. Mikonos,
outro de nosso destino no país, era um sonho que carecia de transporte naval
para se concretizar.
A viagem no Ferryboat – que eu odiei – que nos levaria à maravilhosa ilha grega, foi acompanhada pelos pássaros, que pareciam indicar a rota a ser seguida pelo comandante. Ao longo da travessia de 5 horas entre Atenas e Mikonos eu só pensava na injustiça de não ter nascido rica para poder fretar um helicóptero que me tirasse daquele marasmo naval. Que tédio é uma viagem de navio, gente! A a paisagem não muda, na maior parte do tempo! Fiquei indignada! (Arroubos insanos da juventude... Sabe como é, né?)
Os gregos
de Atenas foram uma decepção à parte, raramente nos trataram com alguma
simpatia, quando nos identificávamos como brasileiras. À exceção dos vendedores,
que queriam o nosso rico dinheirinho, os demais nativos foram muito grossos ou
indiferentes conosco em quase todas as circunstâncias.
Em Mikonos
o tratamento já foi um pouco melhor. Era alta temporada. O calor escaldante
atraía turistas de toda parte da fria Europa do norte. Encontramos um grupo de
turistas mexicanas que fizeram uma festa ao saber que éramos do Brasil. A única
vez, em solo grego, que tivemos um afago em nosso ego.
Mas nem tudo foi péssimo. Valeu a
pena ver a beleza do lugar. A Grécia é mesmo linda. Mikonos é de uma beleza que
emociona de levar às lágrimas as pessoas mais sensíveis. Na boa... Deus estava
muitíssimo inspirado quando desenhou aquelas paisagens. Caprichou pra valer!
Entretanto,
o que ficou pra mim, em relação à Grécia foi mesmo a paisagem. Não é um lugar
que eu queira voltar algum dia.
Já no caso
da Turquia, a coisa toma outro rumo.
Primeiramente,
os turcos e as turcas são simpaticíssimos. Tá, você pode estar pensando: xi... isso é carência
afetiva pós rejeição dos gregos. Asseguro-lhe que não é.
Pra começar, no dia seguinte de nossa chegada à Istambul, procuramos uma loja para revelar as fotos
tiradas na Grécia. A loja era de um senhor que parecia ter uns 65 anos de
idade. A Laura era a nossa intérprete, pois era a única de nós fluente em
inglês. O senhor da loja, ao nos ouvir conversando em português, perguntou se
éramos do Brasil e, ao ter a resposta positiva, tirou do armário um LP de chorinho interpretado por Jacob
do Bandolim. Justo o chorinho, esse ritmo típico do Brasil – difundido brilhantemente
pelos ícones da música brasileira de raiz, Jacob do Bandolim, Pixinguinha, Ademilde
Fonseca, Ernesto Nazareth, Zequinha de Abreu, Chiquinha Gonzaga, entre outros, que exige maestria de quem se dispõe a executá-lo..
De cara ele nos perguntou:
- Vocês tocam algum instrumento musical? Podem tocar essa música pra mim? Ele disse,
apontando para o título Tico Tico no Fubá, na capa do long
play.
- Não
tocamos não, meu senhor. Respondeu a Laura.
- Ah... Que
pena! Nunca encontrei um turco ou um turista capaz de tocar as músicas desse LP,
com a competência dos brasileiros. Ninguém faz música como vocês, brasileiros!
Ah, minha
gente... Ouvir isso depois de ser destratada em outro país, já nos colocou em
êxtase. Daquele momento em diante me apaixonei perdidamente pela Turquia e por
sua gente. Até porque, convenhamos, o senhorzinho turco estava coberto de
razão. Nós podemos ter todos os defeitos do mundo, mas ninguém é mais
musical e desenvolto para criar ritmos do que nós, né não? Eu acho!
Ficamos 5
dias em Istambul. Por lá andamos a pé, de ônibus, de bonde e conversamos com todos
que se abriram para nos receber. Era interessante ver o quanto eles ficavam
confusos ao ver aquelas 6 mulheres tão diferentes entre si, sem saber de onde éramos: a Laura era nissei
cujos pais vieram para o Brasil logo depois da II Guerra Mundial; a Marilene de
ascendência portuguesa; a Maria do Carmo de ascendência espanhola; a Elisa –
cujos pais eram italianos legítimos; a Edna com traços muito semelhantes aos das árabes
que encontrávamos no Iraque e eu, uma mistura de pretos, índios e brancos que
forma a matriz étnica brasileira. Isso confundia os turcos!
Entretanto, quando descobriam nossa nacionalidade e nossa residência no Iraque, faziam questão de falar conosco num idioma que misturava o português, com o árabe, o espanhol, o turco, o inglês e dezenas de gestos, no intuito de nos deixar o mais a vontade possível. Além de toda simpatia e cortesia (vendedores do Grã Bazar – o primeiro shopping center de que se tem notícia – faziam questão de nos oferecer chás de maçã, de romã, de limão... todos deliciosos).
E não era só isso. Pensa num povo bonito! Oh gente
linda, meus deuses e minhas deusas! Ali tudo é beleza: da natureza ao povo turco, passando por arquiteturas deslumbrantes, tudo era um
colírio para os olhos. Claro que todo agrado era também uma grande estratégia
para vender. Era impossível sair das lojas de mãos vazias.
Uma cena
engraçada aconteceu conosco quando fomos visitar a Mesquita Azul. A Blue Mosque
é uma das mesquitas, transformada em museu, na qual os não muçulmanos podem
entrar.
Como acontece
nas casas e na maioria dos templos asiáticos (muçulmanos ou de outras
religiões), não se adentra a esses espaços de sapatos. Sempre há um local onde
nossos calçados ficam alocados enquanto os visitamos. Estávamos na entrada da
mesquita entregando nossos sapatos e conversando entre nós quando um jovem
turco, belíssimo, nos dirigiu à palavra, falando em português, com sotaque
carregado:
- Vôces son
do Barasil, non?
- Sim. Somos
brasileiras. Respondi.
Super feliz
e quase aos gritos ele respondeu:
- Puta que
pariu, porra!!! O que barasileiras fazer na Turquia?
Levei um
susto. Laura olhou pra mim e começamos a rir muito quando ele continuou com seu
português escrachado, num jeito meio Dercy Gonçalves de ser. E a Laura
respondeu em português:
- Viemos
conhecer esta cidade linda. Sua terra é linda, sabia?
- Oh...
thank you! Lindas son vocês... Bem que dissem que múlhe (acentuando a sílaba tônica no "mu") barasileira é filha da
puta... E son dimais filha da puta! Ele disse, com aquele jeito sedutor típico dos turcos.
Sem compreender
muito bem a razão de tantos palavrões, Laura fez a seguinte observação:
- Você fala
bem o português. Onde aprendeu a falar nosso idioma?
- Ah... eu
aprendi com um brasileiro (que aqui eu chamarei de Zé) que viveu no Iraque e fica tempo na Turquia. Ele ensina falar.
- Entendi. Mas
ele te ensinou a falar muito palavrão. Ou seja, te ensinou palavras que pessoas
bem educadas não falam. Você chamou as mulheres brasileiras de orospu
çocugu (que é filho da puta em turco). Disse-lhe aquela que no futuro
seria a minha comadre Laura.
- Noooooon!!!
Non pode ser! Zé disse: faz múlhe barasileira fica feliz chama filha da
puta. Non é assim? Ele falou espantado.
- Não é
assim. Isso é xingamento! Respondi.
- Non pode
ser. Enton... Que é ser maricas? Ele perguntou.
- Maricas é
um termo pejorativo usado por gente preconceituosa para se referir aos
homossexuais. Laura respondeu.
- Ah non...
eu jogo basquete. O Zé ensina que eu ser maricas no esporte... Oh non, non,
non!!!
A conversa
se estendeu por um tempinho, mas tínhamos pressa para entrar na mesquita. O museu
fecharia em pouco tempo e queríamos visita-lo com calma.
Pois é. Resistir quem há de???
Certamente havia
outros palavrões ensinados pelo Zé àquele jovem turco, que se achava o ban ban
ban em nosso idioma, desconhecendo o alcance da malandragem brasileira, quando
se trata de aproveitar uma oportunidade de zoar um incauto estrangeiro. Espero que
aquele garoto turco não tenha se ressentido com os brasileiros para sempre e
que isso tenha servido como incentivo para aprimorar o conhecimento do nosso
rico idioma.
O que eu
sei é que a viagem à Turquia me deixou saudades e esse é um lugar que eu
pretendo voltar, de preferência em família. Entretanto, reconheço a precariedade
de minha vida financeira, a distância que nos separa e os custos dessa viagem,
por enquanto, não cabem em meu orçamento familiar. Mas eu sou brasileira e não
desisto nunca, continuarei firme investindo com fé na mega sena da virada, acreditando
que as forças universais não permitirão meu desencarne dessa vida, antes de me
conceder o gostinho da riqueza. Tenho fé!
Quem viver,
verá!
Maravilha! Que experiência fantástica! Realmente inesquecível essa grande oportunidade que Deus te deu de ir a lugares tão diferentes e históricos.
ResponderExcluirA impactante imagem da Mesquita Azul, comove só de ver as fotografias, imagine pessoalmente!! Viagem riquíssima e com o privilégio de de ver Mármara o Bósforo e a cidade de Mikonos, que mais parece um jardim florido.
ResponderExcluirAbraços e até a 5ª parte dessa rica aventura.
....e a sra., uma elegância só. Não poderia deixar de observar.
ResponderExcluirAdorei ler sua saga no Iraque, porque foi muito muito parecida com a minha. Os personagens desta história também são da minha. Maravilha!
ResponderExcluir