A SACRALIDADE DA COMIDA: UMA PROSA SOBRE O ATO DE COMER E DE COZINHAR

Se há uma lição que aprendi com minha mãe e com minhas avós é que "comida é sagrada". Na minha família só se joga fora a comida estragada. Mas cuida-se muito para que ela não chegue a esse ponto.
De minha parte, depois que andei escrevendo sobre o Japão num dos meus livros didáticos, descobri a importância dada, pelos nipônicos, à comida e passei a crer que, mesmo sem ter os olhos amendoados e cabelos lisos, a família "Barbosa da Silva" talvez tenha um pezinho na Terra do Sol Nascente. Os japoneses educam seus filhos para jamais deixarem um grão de arroz sobrando no prato. Isso é considerado uma grave falta de educação no país. Uma descortesia!
Meu pai sempre que via um farelo ou restos de qualquer comida jogado no chão, nos advertia: "não pise que é pecado"!
Se é pecado, eu não sei, mas isso sempre nos remeteu a ideia do respeito à comida.
Pois bem, a nossa família sempre foi pobre. Assim como os japoneses do passado, nossos pais e avós vivenciaram a escassez e, por isso, sabiam da necessidade de não desperdiçar nada. Especialmente a comida.
  Estamos nos refazendo das comilanças do Natal e do Reveillon. Nesse natal de 2015, quando minha mãe (que vem sofrendo alguns lapsos de memória devido a um AVC isquêmico) fez a oração antes do almoço do dia 25, ela resolveu agradecer a todos os que fizeram chegar até nós aquela comida deliciosa feita pela Telma (uma banqueteira de mão cheia, que nos brinda com suas maravilhas em ocasiões especiais). Ouvi, emocionada, a minha mãe agradecendo e pedindo bênçãos dos céus para os camponeses, transportadores, comerciantes... Enfim, todos os responsáveis por cada alimento daquela mesa, que iria, não só nos dar o prazer que a comida nos traz, mas nos fortalecer para as lutas do dia a dia.

 Fonte da imagem: acervo pessoal

A emoção me veio do fato de saber que, mesmo com a memória comprometida, disso a minha mãe não se esqueceu. Isso me fez lembrar da música "Do Brasil", do mineiro talentosíssimo, Vander Lee.



   Lembro-me que, em nossa casa, a recomendação sempre era:

"Repita quantas vezes desejar, mas não desperdice a comida, só coloque no prato o que tem certeza de que vai comer".
   Em seus tempos de boa memória, minha mãe era uma mulher muito criativa na cozinha. Em casa comíamos bolinho de tudo: de sobras de arroz, de carne, sobras de legumes variados que, por vezes eram misturados entre si e viravam deliciosos croquetes. A máxima de Lavoisier: "na natureza nada de perde, nada se cria, tudo se transforma", sempre foi lei para a família. 
  E eu continuo repassando essa ideia para os meus filhos e reproduzo essas ações em minha casa. (O arroz com lentilha da ceia de ano novo, obviamente virou um delicioso croquete de arroz com lentilha, acrescido de queijo minas ralado e gergelim branco. A travessa esvaziou em poucos minutos).




   Talvez seja por isso que me incomoda tanto assistir a filmes e programas de TV que fazem "guerras de comida" ou, quando vejo crianças desperdiçando ovos e farinha de trigo nos amigos aniversariantes. Entendo a farra, mas precisa ser com comida? Fico imaginando uma criança de rua, que não come algo decente há dias, vendo isso na tela das TVs das lojas.


Britânicos pagam ingresso para participar de guerra de comida.

Fonte da imagem: http://s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2010/12/20/000t_trhkg4397689.jpg (acesso em 04 jan. 2016)

    Se pensarmos bem, a comida nossa de cada dia precisou de muito tempo para estar pronta para nos atender – desde a lavoura até o seu preparo – e percorre um longo caminho para estar a nossa disposição. Convenhamos, com que direito desperdiçamos algo tão divino, quando milhões não dispõem do mínimo para sobrevivência?

   É preciso entender que o ato de comer é sagrado. Não a toa a comida é um dos mais importantes elementos que compõem a cultura de um povo. 
   Em todas as culturas conhecidas do mundo, as pessoas se confraternizam; sócios fazem reuniões de trabalho; namorados se amam; famílias se reúnem; amigos distantes fazem planos de se reverem... e em todos os casos estabelecem rituais de encontro nos quais a comida é um dos personagens centrais. 

    Comer é mais que um ato de sobrevivência, é um ritual. Por isso, as dietas – por menos restritivas que sejam – são tão sacrificantes. Por isso, emagrecer é tão difícil para aqueles que sabem saborear um bom prato. E mais difícil ainda para aqueles que têm muitos amigos. 

   Assim como comer dá, à maioria das pessoas, um prazer indescritível, o ato de cozinhar é uma das tarefas mais divinais praticadas pelos seres humanos. A boa comida não é feita apenas da mistura correta dos ingredientes, na medida certa, para agradar ao paladar. A comida exige ser manuseada com amor pelo mais contundente dos motivos: na maior parte das vezes, ela se destina à partilha, à felicidade do outro. (Será por isso que a gente lembra tanto das comidas da vovó e da comida da mãe?) Isso é ser generoso e a generosidade, essa sim, é capaz de vencer a dor.


Fonte da imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizUx9vsdwMeuAVd8cldrdG__S6X_Kqo4W7JjIFmIPLsu5ztSw5JKBU7SyQGyF1Pcf5Ny9X777x2lTusA3pmbFsagv5MJQZeK-Za1ULyh6pfk_Tz9DpswnH7sd8oat5CcOJsIdgWcEFtB2t/s1600/374295_475851819138475_114900587_n.jpg (acesso em 04 jan. 2016).


   No entanto, amigo, em tempos de mudanças climáticas, sabendo que NENHUMA outra atividade econômica depende mais do clima do que a agricultura e, por maior que seja evolução tecnológica, não conseguiremos inventar sementes artificiais, capazes de germinar sem a presença da água, do sol, do solo e do tempo que a natureza precisa para produzir seus frutos. Ou mudamos nosso modo de nos relacionarmos com a comida, evitando desperdícios, ou a escassez não demorará a nos fazer companhia. Aí poderá ser tarde demais para todos nós. E nada no mundo é pior do que o "tarde demais"!



https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjV8IVLIrRUF0lrSVe68nPEtjqw0ygwpeo8BUPsM3f0vJwACp5Jnsjtz77CN1zBzqoN5qrH7HTzQ2oDt2bF3KqH1AlskrqoLvCQLIljakpaxJtNQn5YgKLNo8tPLKME_arTPZrRrTHhYqM/s1600/Agriculture-climate.jpg (Acesso em 04 jan 2016)

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