LIÇÕES
Em
1988, eu fui contratada para o cargo de professora de Geografia do Colégio
Pitágoras Cidade Jardim.
O
Pitágoras daqueles tempos não era apenas um colégio a mais em Belo Horizonte, era “O” colégio. Era a escola dos sonhos dos pais que desejavam dar aos filhos a melhor
educação formal, que sua grana pudesse pagar e dos professores que sabiam que
trabalhar ali era um passaporte para ser aceito nas melhores escolas do
país.
Ali
se encontrava a elite da educação brasileira, tanto em termos de excelência
profissional, quanto no quesito retorno financeiro, que era um dos maiores do
país. A escola pagava muito bem.
Foi
nesse contexto que eu conheci a Neuma – uma mestra que nos deixou na tarde do
dia 24 de dezembro de 2021.
NEUMA
MARIA CASTRO e MARIA DO CARMO PETRILLO foram as mestras que me receberam no
Pitágoras. Eu, uma garota ingênua, cujas circunstãncias da vida empurraram do interior de MG para a capital e impôs
desafios, que eu sequer fazia ideia que pudessem existir e, menos ainda, que
euzinha pudesse superar!
Às
vésperas de assumir aquelas 45 aulas semanais, naquele que ainda é o prédio
mais imponente da Av. Prudente de Morais onde ficava o Pitágoras, eu não
consegui dormir, entre tantos motivos, por nem conseguir medir o tamanho do desafio que me aguardava. Eu havia passado
as férias estudando e me preparando para um possível fracasso.
Afinal,
como eu, com tão pouca experiência iria conseguir enfrentar aquele colosso de
escola, aqueles herdeiros da elite financeira das Minas Gerais, que conheciam o
mundo de ponta-cabeça, para dar aulas de Geografia? Por que, mulher...? Por que
escolher logo a Geografia? Eu pensava e já me arrependendo de minha opção...
Além
disso eu pensava: como a equipe de professores renomados, altamente
qualificados, aprovados em uma seleção rigorosa e que eram referências na educação mineira ia receber
aquela garota, no auge de seus 27 anos, com experiência quase nenhuma?
Mas
todos os meus temores sumiram quando as minhas Mestras Neuma e Maria do Carmo
me tomaram pela mão, me apresentaram ao departamento de ciências humanas da escola e me
deram dicas preciosíssimas, tanto sobre o ato de ensinar naquelas novas
condições, quanto para a minha vida pessoal e formação de novos valores, que estão comigo até
hoje.
A
primeira e mais importante lição eu recebi da Neuma:
–
Vá se filiar ao SINPRO (Sindicato dos Professores da Rede Privada de Ensino). A
classe trabalhadora precisa estar junto com quem lhe defende e põe a cara para
bater, a fim de conquistar e manter nossos direitos! Ela me disse isso, já me
entregando a ficha de filiação, que ela sempre tinha na bolsa para oferecer aos novatos.
E
elas me guiaram e me ensinaram a transitar, com segurança, naquele espaço.
Em
1989 fizemos a mais longa e histórica greve da Rede Privada de Ensino de BH.
Foram 36 dias parados, com passeatas todas as semanas, logo após as reuniões
que ocorriam no saguão da Assembleia Legislativa. Eram passeatas alegres e reivindicações urgentes e necessárias, que
foram atraindo mais e mais escolas.
Naquela
época, a inflação passava de 40% ao mês, o SINEP – sindicato patronal – se negava
a nos dar reajuste condizente, embora tivesse reajustado as mensalidades acima
da inflação vigente. Houve resistência por parte de alguns colegas professores (porque sempre há aqueles que não entendem ou não querem se comprometer, optando por colher os frutos das lutas alheias, não é?), mas aos poucos, as escolas foram se juntando à nós. Quando o Pitágoras
entrou com força na greve – escolas que nunca haviam parado em outras paralizações – aderiram ao
Movimento.
E
a vitória foi expressiva: conseguimos reposição e ganhos reais acima da
inflação; o adicional extraclasse, o direito ao recebimento pelas reuniões, entre
outros direitos trabalhistas, até então, inexistentes para a nossa categoria.
Lembro-me de uma reunião em que fomos convocados para conversar com os donos do Pitágoras, numa clara adoção da manjada tática de dividir para enfraquecer. Nesse caso, a greve. Recusamos todos os convites, exceto um. Fomos conversar, mas já decididos a não negociar em particular.
Ao chegar fomos
reunidos no auditório do colégio e Neuma, elegantíssima como sempre, tomou o
microfone e fez o discurso que resultou em sua demissão no fim daquele ano, na qual,
entre muitas outras coisas ela disse:
–
Os senhores querem fechar um acordo conosco. Entretanto, nós temos o SINPRO que
nos representa e que fala por nós, porque isso foi decidido pela maioria, em
assembleia. Falam em pagamento pela dedicação exclusiva aos que só trabalhem
nessa escola. Mas a dedicação exclusiva de que falam jamais conseguirá bancar todo o tempo, energia, estudo e entrega que cada um dá a essa escola. Dedicação exclusiva
é o que Silvio Santos paga ao Gugu (que havia sido sondado por outras emissoras
e, para não perde-lo, Sílvio cobriu a oferta, tornando-o o mais bem pago
apresentador de TV daquela época). E ela falou das turmas super lotadas, do desgaste de nossas cordas vocais e tantas outras coisas... Falou por todos nós.
Terminando
o discurso ela foi ovacionada e nós voltamos pra casa, aguardando as
negociações entre os dois sindicatos: patronal e dos professores.
Quando
me juntei a ela, ao fim desta reunião, ela me perguntou:
–
Você acha que eu fui grosseira?
–
Não foi. Você disse tudo com muita elegância, voz pausada. Falou por nós!
Ao
que ela respondeu:
–
Ah... Graças a Deus. Porque eu vou te dizer uma coisa: na vida a gente pode até perder tudo, inclusive o emprego, mas não pode perder a classe!
Eu
entendi perfeitamente! Afinal, essa era a Neuma!
Com
o prolongamento da greve a coisa foi ficando apertada para os colegas que mantinham
suas famílias, afinal, ficamos quase 40 dias em greve. sem receber salários. Para
ajudar os companheiros, uns professores faziam sanduíche natural para vender,
outros traziam salgados feitos pelas esposas e mães, nós fazíamos vaquinhas
para ajudar nas despesas dos colegas casados e resistimos até a vitória.
Numa
destas passeatas, mais no fim da greve, nós estávamos descendo a Rua Rio de Janeiro,
pacificamente, para terminar a caminhada na Praça Sete, quando vimos chegar na Afonso Pena o ônibus com a força do
batalhão de choque e seus instrumentos de tortura (em forma de cassetetes de
madeira de lei), para nos intimidar. Infiltraram alguns homens que, ao verem o
batalhão, encontraram pedras soltas não se sabe onde, numa cidade coberta por
asfalto e, de repente, começaram a quebrar as vitrines das lojas. Afinal,
era preciso desqualificar o movimento e a índole da classe educadora, colocando
a população contra “aqueles baderneiros” que não queriam trabalhar,
desconsiderando que, professor é o único trabalhador que tem que repor todos os
dias e horas parados, para não prejudicar seus educandos.
A
imprensa (sempre a imprensa...), até então, não noticiava nossa luta, por maior que se tornasse a
nossa greve e o número de escolas que aderiam à ela. Nossas passeatas não
passavam nos jornais da TV. Entretanto, naquele dia, quando a confusão se
formou todas as TVs estavam lá.
Ocorre
que, me perdi das amigas no corre-corre que se estabeleceu. Quando dei por mim,
já estava na Praça da Liberdade e até hoje, não faço ideia de como cheguei lá. Mas nós já tínhamos combinado que, caso nos perdêssemos, nos reencontraríamos no quarteirão da rua Carijós da Praça.
Passado
o susto, nos reencontramos e voltamos ao destino final: obelisco da Praça 7. E não
é que foi ali, em plena praça, punho em riste, que eu, Maria do Carmo e Neuma
fomos fotografadas e viramos capa do recém-criado jornal Hoje em Dia? Se houvessem
câmeras filmadoras como hoje, estaríamos nas Redes Sociais entoando o nosso
mantra: “o professor unido, jamais será vencido”!
Esta
foi a melhor aula de política que recebi em toda minha vida. E eu, aquela
garota do interior que, sequer soube das agruras da Ditadura Militar, enquanto
vivia a adolescência em Itabirito, só compreendi a importância da luta e da
consciência de classe, porque tinha essas mestras ao meu lado, me explicando as
entrelinhas e as mensagens subliminares presentes nos gestos e nos discursos.
Depois
de viver tudo isso, saí de BH por mais de uma década. Fui viver em outros
Brasis. Mas as lições ficaram.
Em
2018 reencontrei Neuma. Lá estava ela ainda atuando em sala de aula, vibrando e
fazendo os alunos vibrarem com sua bem contada história do mundo e do Brasil. Mais
uma vez, amada pelos alunos e com o mesmo entusiasmo dos iniciantes, mesmo já
tendo vivido mais de 7 décadas.
Certo
dia, eu já aposentada fazia 5 anos e vivendo como uma feliz dona de casa e uma
escritora amadora nas horas vagas, recebo um telefonema dela me chamando para
me apresentar à escola em que ela estava trabalhando. Teceu inúmeros elogios à
escola e ao projeto educacional inclusivo da Casa Viva, onde ela havia montado
seu novo palco.
A
escola me aceitou e eu aceitei o desafio. Fui. Encantei-me com o projeto e me
preparei para encarar o que viesse. Mais que isso, eu estava magicamente
entusiasmada e grata pela oportunidade de trabalhar de novo com uma de minhas
mestras: a Neuma. E assim foi.
E
era preciso que assim fosse. Tínhamos mais uma luta grande a enfrentar. O nazi
fascismo ameaçava tomar o país se valendo de um genocida e de sua família. Era preciso
que estivéssemos juntas, mais uma vez, para mostrar que envelhecemos sim, mas
não estamos mortas e nem dispostas a entregar nosso país, nossa alegria, nossa
esperança, os direitos alcançados pelas lutas de tantos e o futuro de nossos alunos e filhos sem lutar. E assim foi.
Eu
continuo aqui. Não sei ainda por quanto tempo, mas prometo às minhas mestras
que as lições foram apreendidas e que os exemplos de amor ao Brasil, ao ato de
ensinar e aprender, a força para não fugir das lutas que me legaram, não se perderam
em mim. Agora lutarei por nós duas e pelo nosso povo, tendo sempre em mente o
sonho de ver a nossa gente unida, alegre, combativa e solidária para jamais se
deixar vencer pela opressão.
Hoje
dedico esse relato cheio do meu amor, respeito e carinho à elas: as minhas mestras Neuma e Maria do Carmo, com toda gratidão que trago dentro de mim.
Quanta sensibilidade e amor! Que pena que não conseguirei conhecer a Neuma pessoalmente. Parabéns, Sílvia
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