MINHA VIDA NO IRAQUE, NOS TEMPOS DE SADDAM HUSSEIN - CAPÍTULO I
Capítulo I: a viagem de ida
Na segunda metade do século
XX, o governo brasileiro – então nas mãos dos militares (1964 – 1984) – fechou
uma parceria com o governo iraquiano de Saddam Hussein (1979 – 2003).
De acordo com os registros históricos, em decorrência da importação do petróleo, a balança comercial Brasil-Iraque estava em desequilíbrio e o caminho encontrado pelo regime militar foi a parceria com o ditador Saddam Hussein, que – mesmo em guerra com o vizinho Irã – investia massivamente na infraestrutura do Iraque, naqueles tempos.
Foi o tempo em que o
mundo se viu em dificuldades com o aumento dos preços do petróleo determinados
pelos países membros da OPEP, desde a chamada “Crise do Petróleo” de 1973 e o restante do mundo estava se ajustando para enfrentar os novos desafios.
Para reverter esse cenário, a solução
encontrada pelo presidente Ernesto Geisel na época foi a venda de serviços
brasileiros de engenharia (do mesmo modo como fazem os cubanos com a venda de
serviços médicos mundo afora). Para tanto, a mineira Mendes Júnior foi a
empresa contratada para a construção da ferrovia
Baghdah-Akashat, a construção da rodovia
Expressway e de uma estação de
bombeamento de água do rio Eufrates (Projeto
Sifão).
Eu, no auge dos meus
recém-completados 26 anos, recém-formada no curso de licenciatura em Geografia
pela UFMG e iniciando o bacharelado, fui atraída por um anúncio do Colégio
Pitágoras sobre a seleção de professores para as suas unidades espalhadas
pelo Brasil e pelo mundo. O objetivo era atender às necessidades educacionais dos
filhos dos trabalhadores brasileiros, tanto dos diversos projetos
desenvolvimentistas criados pelo regime militar no Brasil (projetos
mineralógicos da Amazônia, construção das hidrelétricas de Tucuruí e Balbina),
quanto outros projetos diversos comandados por brasileiros no exterior (Angola,
Moçambique, Mauritânia, Congo Francês, Equador, Peru e Iraque).
O Pitágoras daquela época era a empresa mais bem sucedida na área da educação no país, transformada em grande multinacional do setor. Assim, na primeira segunda-feira janeiro de 1987, aconselhada por meu irmão Celso, resolvi entregar o meu pobre e quase zerado curriculum no departamento pessoal do Pitágoras, empresa que havia sido contratada pela Mendes Jr. para essa função.
Confesso que não tinha nenhuma expectativa de ser selecionada e não
estava assim tão determinada a sair de BH, pois tinha uma vida tranquila por
aqui e já estava trabalhando no colégio do Sindicato dos Bancários, localizado perto de minha casa, com horários que me permitiam continuar os estudos. Mesmo
assim – sem muita convicção – me candidatei a uma vaga para uma das muitas unidades do Pitágoras na Amazônia.
No entanto, a aprovação
veio com uma ressalva: não havia mais a vaga para Carajás, mas tinham uma vaga
para mim no Iraque.
Eu não estava preparada
para nada daquilo, tanto que continuei trabalhando e estudando enquanto participava do
processo de seleção. Eu não achava, de verdade, que – com experiência quase
zero, super jovem e recém-formada – pudesse ser aprovada naquelas infindáveis
baterias de testes, que duraram quase um mês. Aliás, já estava com tudo pronto e combinado com amigos para passarmos o carnaval em
Ouro Preto naquele março de 1987.
Além do mais, tudo era muito novo pra mim. Sendo de
filha de um funcionário público, de uma costureira e vindo do interior de MG, eu era uma caipira que pouco sabia das coisas de BH e do Brasil, NUNCA havia, sequer,
entrado num avião. Passaporte eu nem sabia se era de comer ou de vestir (risos).
E ainda tinha outra questão
importantíssima: aquela que seria a minha primeira viagem de avião, me levaria
para um país que estava EM GUERRA com seu vizinho Irã, onde se falava um idioma
que só nascendo de novo, em algum país de língua árabe, eu conseguiria aprender
a pronunciar palavras básicas.
Fui pra casa e conversei
com meus pais, que sempre foram muito libertários em seu modo de educar os 6
filhos. Meu avô paterno - o vô Tier - que passava uns dias conosco, foi veementemente
contra. Fez a maior campanha para meus pais não permitirem tal loucura. Minha
vó paterna - a vovó Idalina - me disse em segredo: “vái sim. Lá você vai ganhar muito dinheiro ( o que não foi totalmente verdade...) e vai
encontrar o amor de sua vida. Não tenha medo”.
Meus pais me deixaram livre
para decidir: “você decide o que quer fazer de sua vida. Se decidir ficar
estaremos com você. Se for ficaremos na torcida para que você seja feliz
por lá. Se decidir ir e, chegando lá, você perceber que não era isso o que queria,
volte que estaremos aqui te esperando. Lembre-se de que você sempre terá para
onde voltar”.
Foi assim que eu escolhi ir.
Me apressei para pedir demissão do Colégio em que eu trabalhava, onde fui muito bem
acolhida e incentivada pelo Fernando Caramuru, que era o diretor da escola.
Tranquei a faculdade e fui providenciar a papelada para a viagem.
Na hora de escolher a
empresa aérea e o tipo de voo, escolhi a Iraqi
Airways, “carinhosamente” chamada de pepinão pelos brasileiros que
trabalhavam na Mendes Jr., por ter suas aeronaves pintadas de verde.
Eu escolhi a companhia
iraquiana por dois motivos principais:
1. Eu fui a última professora a embarcar
para o Iraque naquele ano de 1987 e o ano letivo já havia começado há mais de
um mês. Como o voo da companhia iraquiana era direto, só com escalas de
reabastecimento em Recife, Lisboa (Portugal) e Amã (Jordânia), eu ganharia tempo.
2. Eu leio e compreendo o espanhol (melhor
do que compreendo o português lusitano, que fique claro. Risos...), mas não
falava (e não falo) nenhum outro idioma além do português brasileiro. Eu
estaria sozinha, sem nenhuma família, amigo ou conhecido, com destino ao Iraque naquele voo. Assim
sendo, não queria me arriscar numa conexão de 2 ou mais dias, em algum país
europeu, com o risco de me perder por lá e sem conseguir me comunicar.
Mas como diz o divertido vídeo do
Joseph Climber, do grupo humorístico “Melhores do Mundo”: a vida é uma caixinha
de surpresas... E comigo não foi diferente.
Embarquei para o Rio de
Janeiro no dia 26 de fevereiro de 1987, num voo da Vasp das 13 horas de uma tarde ensolarada.
Iríamos embarcar no Pepinão num voo que sairia às 19 ou 20 horas, se me lembro
bem, com destino à Bagdá – capital do Iraque.
Chegamos ao RJ e lá
vi que o avião estava relativamente vazio, com alguns passageiros que
desembarcariam em Lisboa, outros poucos que ficariam em Amã e, com destino ao
Iraque, só eu e outros 55 trabalhadores (principalmente faxineiros, pedreiros,
mestres de obra, eletricistas e encanadores). Todos homens e só eu de mulher
ali entre eles.
No Galeão, umas duas horas
depois de despachar as bagagens, fomos informados que a viagem havia sido
remarcada para o dia seguinte e que seríamos levados para um hotel, onde
passaríamos aquelas horas e de onde seríamos buscados para o embarque no dia seguinte.
Um detalhe importante: nos voos da Iraqi Airways não eram permitidas bagagens de mão e, como o voo era direto e eu não fazia a mínima ideia do funcionamento de aeroportos, viagens aéreas, etc., não tinha NENHUMA peça de roupa para trocar naquela eventualidade. Tinha poucos cruzados (moeda brasileira à época) na bolsa e só os dólares em cheques de viagem. Fui a um camelô à frente do hotel, comprei uma camiseta de malha que é vendida para turistas e roupa íntima de qualidade duvidosa, com o que me restava em cruzados, para passar aquelas horas.
(Não foram essas malas e nem essa aeronave, mas a cena de nosso pré embarque em 1987, foi bem semelhante ao que se vê nessa apreensão de cocaína em Fortaleza em agosto de 2021. Esta imagem ainda está bem nítida em minha memória)
No dia seguinte, o pessoal da Mendes foi nos pegar no hotel para o embarque. Chegando ao Galeão, como já tínhamos feito o check in, embarcamos num ônibus que nos levou a uma parte meio escondida do aeroporto, longe das esteiras que nos levam direto às aeronaves. Lá chegando, vi todas as bagagens no chão próximo à aeronave e foi pedido que cada um identificasse a sua respectiva mala.
À medida que íamos
apontando nossas bagagens, elas iam sendo acondicionadas na aeronave e íamos sendo
encaminhados para a fila que organizava o nosso embarque. Tudo ia bem, até que
dois rapazes foram retirados da fila e reconduzidos ao aeroporto, logo que
identificaram suas respectivas bagagens. Estavam proibidos de embarcar porque, segundo
informações que nos chegaram, estariam levando cachaça em meio às roupas – o que
não é permitido por motivos óbvios – além do fato de as bebidas serem proibidas aos
muçulmanos (embora fossem vendidas, sem reserva ou quantidade mínima no Duty
Free Shop de Bagdá).
Terminada a inspeção, fomos
autorizados a embarcar. Na aeronave houve uma revista rigorosa. Aeromoças
revistavam as mulheres em um local protegido por cortinas e comissários revistavam os
homens em outro compartimento. TUDO que tivesse alguma relação com judeus, com Israel ou
com o judaísmo (pingente de estrela de Davi, a extinta revista Manchete da Block
Editora, lata de Coca Cola, etc.), poderia justificar a retirada do passageiro
do voo.
Finda a revista, com todos
acomodados em seus devidos lugares, decolamos. Com a aeronave jumbo pouco
ocupada, sobravam lugares e deu para esticar as pernas e fazer uma viagem,
relativamente confortável.
Em Recife ficamos pouco
mais de 1 hora para embarque de mais alguns poucos passageiros que iam para
Portugal, mas não descemos no avião. Sete horas depois, chegamos a Lisboa,
onde fomos obrigados a descer e aguardar os processos de manutenção e reabastecimento do avião no saguão do aeroporto.
Com tudo pronto,
reembarcamos e fomos alvo de novas e rigorosas revistas ao reentrar na
aeronave.
Você pode estar pensando:
mas que rigor é esse?
Explico: o rigor se justificava por uma questão bastante pertinente. Naquela época não tínhamos esse terrorismo dos homens-bomba. Os alvos preferenciais eram os voos internacionais. Os terroristas daquela época tinham como alvo principal o sequestro aviões. Desviavam os voos para locais inusitados e, muitas vezes, as negociações entre governos e terroristas culminavam na morte de passageiros e das tripulações.
Se me perguntam: você não teve medo?
Juro que não. Mas isso não se deve à minha coragem. Deve-se à minha ignorância sobre o funcionamento do mundo naqueles tempos. Eu só comecei a me interessar a respeito destas questões depois que fui para o Iraque. O alvo de minhas preocupações era o Brasil.
Fui criada no interior de Minas Gerais e passei parte da juventude e toda a adolescência sem
saber o que acontecia com o país no período da ditadura. Só quando entrei na UFMG eu descobri o que havia acontecido com o Brasil durante o regime militar. Afinal, eu tive professores
das áreas das ciências humanas que eram simpáticos aos militares. Um deles,
inclusive, era político na minha cidade como vereador filiado à Aliança Renovadora Nacional
(ARENA) que era o partido do golpe de 1964.
Assim sendo, em minha total ignorância e ingenuidade, eu achava que aquele
tipo de embarque e de revistas individuais eram praxe e ocorriam em todos os embarques.
Eu só fiquei meio
apreensiva quando chegamos à Amã, capital da Jordânia.
Já tinham passado quase 20
horas que estávamos viajando e alguns daqueles trabalhadores que iam também
para o Iraque, vieram conversar comigo. Dois deles já estavam voltando ao país
pela 3ª vez. Chegando à Jordânia, ficamos estacionados no aeroporto por mais de
duas horas.
Preocupada chamei um dos
comissários que falava o português lusitano e perguntei:
- Por que está demorando
tanto?
Ele respondeu meio seco:
- Tenha calma, já vamos
decolar.
Ouvindo a minha indagação,
um dos companheiros de viagem se sentou ao meu lado e, na tentativa de me
tranquilizar, me disse:
- Aqui na Jordânia demora
mesmo. Aliás, é a segunda vez que eu embarco e acontece o adiamento do voo,
como ocorreu no Rio de Janeiro. Com certeza o governo brasileiro atrasou a
entrega das armas e munições que envia para o Iraque nesses voos.
- Ãh??? Esse avião está
levando armas e munições para o Iraque? Eu disse quase em pânico.
- Está sim. Eles aproveitam
que o pepinão sempre tem poucos passageiros e usam para isso também. Mas fique
tranquila que a gente tem a segurança garantida. Você sabe por que ainda não
decolamos?
- Não sei. Me conta se você
souber.
- É que, a partir da
Jordânia, nosso avião vai escoltado por dois aviões de caça para o caso de o Irã nos atacar com seus mísseis. Se eles nos atacarem, os aviões de caça interceptam o
míssil.
Perdi a fala, por breves
instantes. Aí sim, eu tive medo. Mas não havia o que fazer. Era aguardar e
rezar.
Pouco tempo depois
decolamos. Da janela eu vi um avião caça ao longe, não sei se ele fez
o que seria o seu papel, como descreveu o amigo. Não o vi mais e nem sei se aquela explicação era
verdadeira. O fato é que cheguei em Bagdá sã e salva.
No aeroporto de Bagdá
também descemos fora das esteiras de embarque e desembarque. Esse foi um dos
mais lindos aeroportos em que eu desembarquei. Lá passei por 7 revistas por
raio X e uma revista individual com abertura das malas e o confisco de meus
xampus e dos meus perfumes por parte das agentes da polícia local.
Aeroporto de Bagdá em 1987
Eu e os 53 homens (dois
ficaram no Brasil por causa da cachaça que levavam na bagagem) tivemos que esperar por mais de
6 horas a chegada do receptivo da Mendes Jr. que nos levaria para Nassuryah, cidade
localizada ao sul do Iraque, cuja viagem de ônibus até Bagdá, durava cerca de 7
horas. Eles tinham vindo ao aeroporto no dia anterior e só ficaram sabendo do
adiamento do nosso voo quando lá chegaram, daí o atraso.
Sentei-me no saguão a
espera do receptivo. Estava exausta e surpresa e curiosa com tudo o que eu via, mas sem
me atrever a sair do lugar.
Chegaram dois voos enquanto
esperávamos: um do Sudão e outro da Coreia do Norte (segundo informações do
autofalante). Eram trabalhadores que vinham de seus países, cujos governos
também tinham parcerias com Saddam pra trabalhar no que o governo iraquiano
chamou de “desenvolvimento e modernização do Iraque”.
Foi ali, sentada e esperando pacientemente que viessem me buscar, que eu conheci os sudaneses em toda sua beleza. Eram homens e mulheres altos, esguios, com turbantes enrolados na cabeça de cor amarelada, que remetia às cores do deserto do Saara ao entardecer. As mulheres lindíssimas, em número bem menor que o dos homens, (assim como as mulheres indianas que vi por lá tempos depois), usavam anéis nos dedos dos pés. Fiquei maravilhada.
Os coreanos baixinhos,
todos de roupas cáqui, do mesmo modelo, pareciam um grande exército de homens pequeninos.
Movimentavam-se de modo disciplinado, em
filas indianas e falando baixinho. Hoje consigo compreender melhor aquele
comportamento comedido dos norte-coreanos, mas na época me lembro de ter por eles uma
mistura de sentimentos que não consegui definir até hoje: medo? Compaixão? Puro
estranhamento? Não sei, até hoje, dar clareza ao que senti.
Só sei que foi naquele
momento que eu me dei conta do que eu tinha feito com a minha vida e do quão longe estava de casa. Só naquele
momento eu entendi as possíveis consequências de minha escolha.
Mas a escolha já tinha sido
feita. Agora era vive-la, tentar ser feliz e aproveitar o que viesse. E eu fui
feliz no Iraque, apesar de todos os desafios que é viver num país em guerra, como vocês - que se interessarem - poderão conferir nos
próximos capítulos.
Também estive por lá foi em 84 para o projeto sifão em Nasiryash com certeza nos conhecemos.
ResponderExcluirQue bom saber que tenho aqui um companheiro de aventuras. Em que setor você trabalhou? Eu estive por lá em 1987.
ExcluirEspero, além de sua narrativa envolvente, imagens suas, em pleno exercício de suas funções.
ResponderExcluirAbraços.
Elas virão... Não tenho tantas quanto gostaria. Eram tempos de máquinas com filmes que tinham que ser revelados, mas vou postar todas à medida em que for desenrolando as histórias.
ExcluirSensacional, Silvinha!
ResponderExcluirMe sentia como vc ,em relação ao mundo , naqueles idos de 1975 em nossa cidade. Leitura deliciosa!
Silvinha, estou anciosa, esperando o próximo capítulo.
ResponderExcluirmaravilhosaaaaaaaaaaaaaa
ResponderExcluirQue legal!!! Parabéns !! Sempre fui sua fã . Ótima professora ����
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