MINHA VIDA NO IRAQUE, NOS TEMPOS DE SADDAM HUSSEIN.- CAPÍTULO 2
Capítulo
2: Os primeiros contatos com as pessoas e com minha nova vida
A viagem de Bagdá até Nassiryah, no ônibus enviado pela Mendes Jr., foi
tranquila e durou cerca de 6 horas, se me lembro bem. Eu estava exausta, mas
não consegui dormir. Além do motorista, haviam outros dois homens do
receptivo e um intérprete egípcio que, semanas depois, se tornou meu amigo. Mas
naquele momento, eu não tinha forças para conversar. Havia uma mistura de
cansaço, alívio por chegar bem, depois das apreensões e sustos da viagem Brasil - Iraque, como narrei no capítulo 1, muita curiosidade com tudo o que desfilava pela janela do ônibus e,
depois de ver tantos soldados e homens armados de fuzis, o medo de – por algum
motivo aleatório – eu me tornar o alvo deles. Ou seria só o medo do novo? Não sei.
Chegando ao acampamento (como nos referíamos à Vila Sifão) ainda de madrugada e todos dormiam. Eu fui encaminhada para o hotel onde iria morar dali em diante.
Entrei no quarto, tomei um banho, me troquei e apaguei como se estivesse
entrado em coma.
Horas depois bateram à porta, com certa insistência, já que eu não acordava, me
chamando para o almoço. Eu me sentia como alguém que havia tomado um porre e
estava vivendo a pior ressaca da vida. Ao acordar, por alguns instantes, não consegui identificar onde estava. Sim. Eu acho que não dormi, mas dei uma morridinha básica e ressuscitei naquela quase tarde do meu sábado de estreia em meu novo lar, às margens do rio Eufrates.
Levantei-me, tomei um banho para acordar do quase coma, me arrumei e fui para o refeitório do hotel. Eram, aproximadamente 13 e 30 de uma tarde ensolarada, mas bem fresca e o horário do almoço era de 12 às 14 horas.
Ao entrar no refeitório vi que ele estava lotado. Os professores e funcionários do Colégio Pitágoras,
liderados pelo meu querido e saudoso diretor Hipácio Gomes Marra e sua esposa Ana, ocupavam
uma grande mesa bem em frente à porta de entrada, aguardando a minha chegada. Queriam conhecer a
professora nova que chegava tardiamente para integrar à equipe.
Quando entrei, todos os olhares se
voltaram para mim e começou um burburinho nas mesas ocupadas por outros
trabalhadores da obra. Naquele momento eu não entendi muito bem o que se
passava, mas me aproximei da turma da escola, que me recebeu com carinho e
alegria, fazendo-me sentir em casa. Me tranquilizei.
Com uma diferença horária de 7 horas
em relação ao fuso horário brasileiro de Brasília, fui instruída a não ceder à tentação de
comer e dormir “fora de hora”, a fim de adaptar o meu corpo e relógio biológico ao novo ambiente. E
assim o fiz.
Meu primeiro contato com a vila foi,
obviamente, na escola. Era 28 de fevereiro de 1987, um sábado, ou seja, era o
primeiro dia da semana para os muçulmanos e, vivendo e trabalhando no Iraque, nós seguíamos o calendário daquele país. Assim sendo, nossa semana de trabalho
começava no sábado e ia até quinta-feira ao meio dia, já que a sexta-feira
equivale - para o povo islâmico - ao nosso domingo. Daí eu fui direto para o
batente, afinal, eu estava mais de um mês atrasada em relação aos meus colegas
e precisava repor as aulas e o tempo perdido.
E assim foi. Mas eu sou uma pessoa
abençoada que encontrou um monte de gente maravilhosa ali, bem longe de casa, a começar pelos meus
alunos. Que garotada fantástica! Eles me fizeram amar ainda mais a profissão
que escolhi. Me ensinaram muito e tiveram muita paciência com aquela mocinha
cheia de ideias, de vontade de crescer e quase nenhuma experiência.
Minha turma linda da 5ª série 1987, no Iraque. (Acervo pessoal)
Já na primeira semana me inteirei acerca
do funcionamento da vila. Uma das coisas que fiquei sabendo era que as pessoas
sempre chegavam cedo para o almoço, para sair o mais rápido possível e ir para seus respectivos quartos a fim de
ter um tempo para uma soneca depois da refeição. E era assim mesmo todos os dias.
Mas então, o que explica o
refeitório lotado até quase 14 horas no dia em que eu cheguei?
Ora, ora, ora... A novidade. E eu era “A” novidade. E aqui tem algo a ser explicado: a vila contava com mais de 2 mil trabalhadores brasileiros. Desses, cerca de 1800 eram homens. Nós, mulheres brasileiras, não éramos nem 200, isso incluindo as crianças e as mulheres casadas.
Eu, quando conheci o Elias no
Iraque. Aqui já éramos um casal.
Por causa disso, os homens brasileiros solteiros que quisessem encontrar uma namorada, para amenizar a solidão que a vida nessas condições nos impõe, tinham que vencer uma concorrência acirradíssima. E não havia a possibilidade de se relacionar com as mulheres iraquianas ou com as muçulmanas de qualquer nacionalidade.
Ocorre que, para os homens estrangeiros – de qualquer país não muçulmano –
relacionamento das mulheres locais com homens estrangeiros não é uma opção bem aceita pelas famílias e, em casos de desobediência por parte das mulheres, não era muito raro que os casos terminassem em violência por parte das famílias dessas mulheres islâmicas. E eu estava
chegando ali, naquela espécie de campo de batalha, jovem não muito feia, solteira e houve (segundo o meu marido que conheci lá) uma disputa
acalorada, entre os solteiros da vila, para ver quem iria conseguir conquistar a nova
professora.
Pois é... Eu estava por cima da carne seca e não sabia de nada, pois, o sacana do Elias só me contou depois que estávamos no Brasil, às vésperas do nosso casamento. Foi assim que eu perdi a chance de viver meu momento "Gisele Bündchen da Mesopotâmia"!
Pois é... Dancei!
A vila Sifão não era muito grande. Creio que abrigava meia centena de casas, ou um pouco mais que isso. O número de famílias que viviam ali não era muito
grande, a contar pelo número de alunos no colégio. Tínhamos turmas do maternal
ao 3º ano do Ensino Médio, mas a maior turma era a da 5ª série, que contava com
13 alunos apenas.
No acampamento (ou vila) tínhamos dois hotéis, além
das casas que abrigavam as famílias: o Hotel
56A – onde viviam os médicos, dentistas, engenheiros e professores
solteiros e o Hotel 56B – onde
viviam os funcionários da administração, importação, escritórios,
enfermeiros... que também eram solteiros ou que não haviam levado suas
famílias.
Eu e a professora Edna, em frente
ao Hotel 56A.
Esta divisão dos trabalhadores pelos
dois hotéis trouxe um problema para nós, professores: uma parcela dos
funcionários que vivia no 56B considerava os moradores do 56A como uma
espécie de “elite metida a besta que deveria ser evitada”, eram os “doutores” que, de modo geral,
chefiavam os departamentos onde trabalhavam os funcionários do 56B. Típica luta de classes, sabe como é...
Ocorre que nós, professores, morávamos no 56A, mas éramos SÓ professores. Porém, contudo, todavia, entretanto... nós compartilhávamos o mesmo espaço da tal “elite metida a besta que deveria ser evitda”. Daí, quando havia alguma festa no hotel 56B, nós não éramos convidados (a menos que tivesse formado um casal entre os povos beligerantes. Risos). O mesmo acontecia quando as festas eram organizadas pelos “doutores”. Nós, professores, também éramos excluídos dos festejos. Ou seja, éramos excluídos por qualquer que fosse o lado que se olhasse.
Nossas pescarias no Eufrates (acervo pessoal)
O que fizemos?
Não processamos ninguém pelo bullying. Hoje, pensando bem, acho que deveríamos ter processado os dois lados pelo bullying sofrido. Certamente continuaríamos excluídos, mas poderíamos sair dessa aventura com uma graninha extra no bolso para financiar as nossas festas e viagens... risos...
Mas nós superamos. Ficamos muito mais amigos e nos
tornamos uma família que – mesmo distantes e com vidas, opiniões, valores e moradias em localizações totalmente diversas, ainda mantemos o contato entre nós, depois de
3 décadas e meia de ausências e distâncias.
Elisa, Zezé, Gotardi e Cida início de preparação da peixada.
Foi em decorrência desse isolamento que passamos a organizar atividades diferenciadas dos "bulinadores", como ir pescar no Eufrates nas tardes de quinta-feira e, à noite nos reunirmos para degustar as peixadas na casa da Marilene e do Tonhão, professores do Pitágoras de Português e de Física, respectivamente, que eram casados e, por isso, tinham direito a uma casa na vila. Ou nos juntar para fazer as faxinas em nossos respectivos quartos do hotel, nas manhãs de sexta-feira, quando não íamos às compras ou só bater perna em Nassiryah, no ônibus disponibilizado pela empresa para esse fim.
E assim os laços ficaram tão fortes que parece que algo mais nos une. Ainda que nos afastemos por um tempo, a vida se encarrega de nos unir em momentos importantes. Tanto os tristes, quanto os felizes.
Em 1991, quando os EUA invadiram
o Iraque, na primeira Guerra do Golfo, estávamos juntos na casa da Cida Lellis,
quando a TV começou a mostrar os primeiros bombardeios.
1ª Guerra do Golfo: quando Saddam deixou de ser visto como o líder confiável e modernizador para os EUA.
Naquele ano, tínhamos tentado nos reunir em
várias outras datas e sempre havia alguém que não podia comparecer. O dia e a
hora em que conseguimos estar todos juntos foi exatamente o dia do ataque, que nos
deixou perplexos e tristes ao ver um lugar e seu povo, que significaram tanto para todos nós, serem destroçados em mais um banho de sangue.
Na medida em que eu ia conhecendo os
meandros da vida na vila do Sifão, ficavam claras as limitações impostas a quem
vive num país que não é o seu, especialmente com um idioma e costumes tão diferentes dos nossos. Mesmo vivendo numa vila com boa infraestrutura:
tínhamos um hospital bem equipado, com médicos e enfermeiros brasileiros, um
supermercado que vendia produtos que iam do Brasil para nos atender, um clube
com sauna, piscina olímpica, quadra de esportes e um salão de festas, além de
templos de várias denominações religiosas, para atender os moradores e
os que viviam nos alojamentos fora dos limites da vila, mas ainda em
“território” brasileiro dentro do Iraque.
Eu e a minha querida amiga Zezé,
que foi também minha madrinha de casamento, em frente à entrada do clube.
A vila contava com seguranças brasileiros e iraquianos e ficava à margem direita do rio Eufrates, localizada a cerca de 350 quilômetros da fronteira com o Kuwait. Nela só viviam brasileiros e, em raríssimos casos, uma ou outra família estrangeira, mas havia trabalhadores solteiros de outras nacionalidades (egípcios, tunisianos e palestinos intérpretes do idioma árabe e português), inclusive, iraquianos.
Os iraquianos eram, na maioria das
vezes, muito afáveis conosco. Era muito comum encontrar pôsteres com fotos do
Brasil nas lojas em Nassiryah e muita curiosidade sobre o nosso país, por parte
dos iraquianos. Eles eram encantados com a explosão de verde que viam nas paisagens
brasileiras. Isso se deve ao fato de viverem num país que, apesar de ser
cortado por dois rios caudalosos (o Tigre e o Eufrates), que favorecem a
formação de oásis pela Mesopotâmia afora, o resto do país é um grande deserto
de cor amarelada.
Tamareiras às margens do rio Eufrates ao sul do Iraque.
Foi para ter um contato mais próximo
com o povo local e conhecer os arredores da vila que o Ronaldo, um dos meus
amados alunos do 3º ano do Ensino Médio, super gentilmente, me levou para avançar os limites da
vila e conhecer o rio Eufrates, numa tarde de quinta-feira (que era o nosso
sábado), logo depois da aula.
Para registrar a minha “estreia” em meu primeiro fim de semana iraquiano, ele pediu emprestado o chador de uma amiga. O chador é uma vestimenta feminina de cor preta, que as iraquianas usam sobre o vestido e que, lá naquela região sul do Iraque era chamado de habaia. Não sei se é assim em todo o país ou se é uma nomenclatura local (como temos por aqui em relação a alguns termos como, por exemplo, mandioca, aipim, macaxeira, etc.).
E lá fomos nós. Quando chegamos a uma guarita, o iraquiano que fazia a segurança veio em nossa direção, apontando seu fuzil para nós. Eu não borrei as calças porque não havia nada pronto dentro do meu intestino, mas já estava vislumbrando o traslado do meu caixão no pepinão, rumo ao Brasil.
O Ronaldo falou algo em árabe com
ele, terminando a frase com o termo “sadique”
(que significa amigo, em árabe) que o fez abaixar a arma e abrir um sorriso acolhedor. Conversamos – se é
que se podem chamar mímicas de conversa, não é? E ele virou nosso parça... Nos
ofereceu chá preto que ele acabara de fazer e nos fez a maior honra: emprestou
o fuzil para tirarmos uma foto e registrar o momento.
Eu,
paramentada com a habaia, Ronaldo e o Sadique iraquiano, às margens do rio
Eufrates.
Eu nunca tinha visto um fuzil ao vivo e em cores de tão perto. Fiquei apavorada com a intimidade agressiva daquele objeto tão próximo de mim. Tive medo de acontecer um acidente e aquele troço explodir em minha cara, já que, para a foto, ele ficou na direção do meu queixo. Mas não havia como recusar aquela gentileza do sadique. Um soldado jamais empresta seu fuzil a um civil, especialmente se ele for um estrangeiro e o sadiquinho tinha sido tão generoso, que não tinha como recusar. Vai que a gente recusa e ele resolve descontar algum trauma de guerra em nós! Eu heim? Melhor obedecer! Mas a foto ficou para a posteridade.
Hoje, quando olho essa foto, fico pensando onde estará ele. Será que sobreviveu às investidas dos EUA para levar a "democracia" ao Iraque? Teria morrido em alguma dessas guerras? Eta gente sofrida e aguerrida é o povo iraquiano, viu?
Deu saudades...
Muito interessante tia!! Adorei saber um pouquinho mais da sua história!!
ResponderExcluirah minha professora...que saudade, escreva mais...nossa olimpiada, nossas viagens...
ResponderExcluirÓtimos relatos! Quero acompanhar os próximos capítulos.
ResponderExcluirQuanta aventura, em um lugar de paisagem carente de verde, uma luz ocre, as vezes dourada, como na bela foto das tamareiras, a beira do Eufrates, o encontro do companheiro, lá no oriente médio.
ResponderExcluirTrabalho, aventura e romance.
Que experiência estupenda.
Parabéns por viver um momento tão ímpar, na vida de alguém e grato por partilhá-la conosco.