MINHA VIDA NO IRAQUE, NOS TEMPOS DE SADDAM HUSSEIN - CAPÍTULO 6

  E O ÁRABE DESCOBRIU O “BARASIL”... E ENFIOU O PÉ NA JACA! - CAPÍTULO 6

Viver no Oriente Médio foi uma experiência riquíssima. Foram muitos aprendizados, tanto no campo profissional, quanto no quesito das relações interpessoais e na convivência com povos, culturas e valores muito diferentes dos meus. E isso vale para os estrangeiros que conheci naquele ano de 1987 e para os brasileiros de origens diversas, com os quais convivi por lá.


Entretanto, viver num país em guerra não é fácil. Ainda que não víssemos a guerra de perto, não presenciássemos batalhas, explosões ou ameaças de ataques ao nosso acampamento, as energias da morte, do sofrimento de garotos impelidos a matar e morrer, antes mesmo de começarem a desfrutar de sua juventude, de mães e pais angustiados obrigados a enviarem seus filhos para a beira do precipício, sem qualquer possibilidade de protegê-los, recobriam de densas e pesadas sombras a atmosfera do país. E eram energias  devastadoras.

Não era incomum sermos atingidos por momentos de extrema angústia, uma tristeza profunda, um forte aperto no peito e uma irresistível vontade de chorar, cujas causas não conseguíamos definir com clareza. Nessas ocasiões parecia que os espíritos dos mortos em batalha nos tomavam os corações e suplicavam o nosso amor e nossas preces, na esperança de vencer a indiferença com que o resto do mundo lhes tratava.

Eu e minha amiga e madrinha de casamento Zezé, na entrada do Clube da Vila Sifão

Mas, justiça seja feita à Mendes e ao Pitágoras. Em ambos os casos, tínhamos à nossa disposição o amparo e os recursos para passar por esses momentos sem grandes traumas. Considerando as limitações impostas pela incipiente tecnologia da época e ao fato de estarmos vivendo num país ditatorial que, ainda por cima, estava em litígio com seu vizinho, nos saímos bem.

Vivíamos em uma Vila confortável, com um clube com várias opções de diversão; uma escola cuja qualidade educacional era a mesma oferecida à nata das elites mineiras; um hospital muito bem equipado que contava com especialistas e médicos de elevada competência profissional; templos para a realização de cultos para seguidores das muitas denominações religiosas presentes no acampamento se conectarem ao sagrado; um supermercado que nos fornecia produtos brasileiros, além de nunca nos negarem apoio para nossos passeios pelo Iraque, tanto no que se refere aos meios de transportes, quanto à disponibilidade de intérpretes do idioma árabe para nos  acompanhar pelo país, para que não nos perdêssemos pela via da comunicação entre nós e os árabes.

Acampamento brasileiro da cidade de Nassiryah

Não conheci todos os intérpretes do Sifão, mas eles eram muitos e de nacionalidades árabes diferentes: tunisianos, iraquianos, egípcios, palestinos e jordanianos. Lembro-me muito de um deles, cujo nome optei por omitir, nesse relato, por não ter autorização do mesmo para citá-lo aqui numa história verdadeira, que pode – de algum modo – ferir os rígidos preceitos da religião islâmica, da qual ele ainda pode ser um seguidor. E eu tenho um baita respeito por esse povo e não quero causar desconforto ou melindres desnecessários em ninguém.

Pois bem, um desses intérpretes se transformou num dos meus grandes amigos. Sempre conversávamos sobre o seu país de origem. Ele era um curioso sobre o Brasil e tinha muitas perguntas sobre o nosso país. Ficávamos horas conversando em frente ao Hotel 56A, depois do jantar ou na sala de TV do hotel.

Foram essas deliciosas conversas que me fizeram entender a dificuldade que os árabes têm para pronunciar o som da letra “p” e das sílabas com “br”, “pr”, “dr”... Esses não são sons presentes no idioma árabe. Não existe o som da letra “p” nesse idioma.

O Ali Babá, por exemplo, como pronunciamos e que nós entendemos como sendo o nome composto do “Ali”, na verdade se refere ao “Ali papai” e nem seria “babá” com acento no “a”, mas a pronuncia correta seria “Áli (paroxítona com acento no "A") e Baba”. Foi com esse amigo árabe que compreendi porque boa parte dos árabes, chineses, coreanos, taiwaneses, japoneses... falam “Barasil” (Brasil), “Dorama” (drama), garade (grade)etc.

Certa vez, num desses papos, o meu amigo árabe, se referindo ao país dele me disse:

- “Zilvia”, você brecisa conhecer meu baís! Lá é tudo muito bom! Baís lindo que, se você quer ir lá, vou levar você bara conhecer todas coisas que maioria de turistas não conhece. Você nem vai querer ir embora!

Eu ri muito e disse a ele:

- Ah amigo, se você for ao Brasil, é você quem vai querer morar lá. Duvido que queira voltar para sua cidade!

- Ah... Barasil bode ser bom, mas meu baís melhor... Abosto com você!

Ficamos nesse embate por um tempo. Ele me contando sobre as belezas da terra dele e eu fazendo o melhor do Brasil desfilar pela imaginação dele.

O tempo passou. A obra do Sifão foi interrompida no final de 1987 e foi sendo desativada aos poucos, pois, ao que parece, Saddam, já tinha planos de invadir o Kuwait, cuja fronteira fica a menos de 200 km de Nassiryah, cidade onde se localizava nossa vila, impedindo a permanência estrangeira ali. A solução era a retirada de todos, a fim de não ocasionar um conflito mundial generalizado, num contexto no qual ainda vigorava a Guerra Fria e a corrida armamentista entre Estados Unidos e União Soviética, que impunham o terror a todos os viventes desse planeta, naquela época (e, convenhamos, ainda hoje, não é mesmo?).


Jumbo da Air France. Modelo que nos levou de volta ao aconchego "barasileiro" em 1987, recentemente aposentado pela companhia.

Eu saí do Iraque no dia 16 de dezembro de 1987, num voo festivo da Air France que comemorava o aniversário de fundação da Companhia Aérea e brindou a todos que estavam naquele voo, com 4 dias em Paris, devidamente acomodados no lindo Hôtel Littré

(Sim, amigos! Eram tempos em que os ecos do fundamentalismo econômico do Consenso de Washington – que se realizaria em novembro de 1989 – ainda não se faziam ouvir e a selvageria capitalista não havia alcançado os estratosféricos níveis da ganância insana, que nos atirou no inferno neoliberal da pobreza abismal. O consenso que ditou as regras que tirou-nos todos os prazeres, afagos, gentilezas e alegrias, em nome do lucro – custe o que custar. Era a época em que as empresas cuidavam de seus clientes e empregados numa espécie de parceria em que todos ganhavam. Inclusive as empresas, que nunca deixaram de lucrar, crescer e se destacar no mundo, como era e é o caso da Air France. Tive o privilégio de viver e trabalhar nesses tempos).


Entrada do luxuoso (pelo menos pra essa caipira aqui) Hotel Littré, em Paris. 

No dia em que saí do Iraque, foi exatamente esse amigo intérprete o encarregado de nos acompanhar ao aeroporto e nos ajudar nos trâmites de saída do país.

Na despedida dei-lhe um abraço apertado e o convidei a vir visitar o Brasil e, super emotivo, ele me disse que tentaria vir aqui ver se o que eu dissera era verdade.

E não é que ele veio?

Estávamos em meados de janeiro de 1988, quando minha amiga Cida Lellis ligou e disse:

- Sílvia, sabe quem está no Brasil e quer muito falar com você? O “Ali” (aqui o chamarei assim, por ser um nome bem comum naquela região).

Ela me deu o nome e o telefone do Hotel em que ele estava hospedado e eu passei quase duas semanas tentando encontra-lo, sem sucesso. Deixava recados e nada do Ali retornar as ligações. Em tempos sem celulares e de comunicação precária, só me restava esperar que ele entrasse em contato.

Numa tarde de sábado, na primeira semana de fevereiro, recebi um telefonema. Era ele que falava quase aos gritos, com a voz rouca de quem participara de uma torcida organizada na final de campeonato do seu time do coração. E, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele se adiantou:

- Zilviaaa!!! Você certa, Zilvia!!! Barasil bom demais! Guero morar em Barasil, Zilvia!!!

- Eu não lhe disse? Acredita em mim agora?

- Simmm... E breciso de ajuda num coisa.

- O que é? Diz aí como posso te ajudar.

- Guero ir bara Rio de Janeiro no Garnaval, mas non gonsigo bassagem para ir bara Rio de Janeiro!

- Por que tem que ser no Rio de Janeiro, Ali? Minas Gerais também tem carnaval. Aqui tem muitas cidades com carnavais animados, inclusive em cidades próximas de Belo Horizonte!

- Non, Zilvia... Non é mesma coisa. Guero ir bara Rio de Janeiro borque me dizeram que garnaval do Rio tem mulher belada na rua... E eu guero ver como é isso!

Fiquei sem o que dizer, mas não tinha como mentir para ele! É verdade. Tem mulher pelada na rua nos desfiles dos carnavais do RJ e de SP. (Mais uma hipocrisia desse país que condena o topless nas praias e cria cabines para mãe amamentarem seus bebês fora das vistas de homens pudicos e, desrespeitosamente, sem noção!)

O que levou o meu amigo árabe a insistir em ver de perto o carnaval carioca.

Naquele ano, o carnaval caiu no segundo fim de semana de fevereiro. Belo Horizonte não tinha, até então, grande destaque nessa festa popular. Os carnavais do interior de Minas eram mais frequentados e famosos que o da capital.

De fato, mesmo contando com a opção ferroviária oferecida pelo luxuoso Trem de passageiros da extinta Vera Cruz, que às sextas-feiras e aos domingos levavam os mineiros até a Cidade Maravilhosa, a opção rodoviária que contava com várias linhas de ônibus ou a aeroviária atendida por, pelo menos 3 grandes empresas aéreas (Varig, Transbrasil e Vasp) que também levavam ao Rio de Janeiro, era impossível conseguir passagens, àquela altura! Estávamos muito perto do carnaval e não seria fácil encontrar vaga em qualquer desses modais para o trajeto BH – RJ, às vésperas da maior festa popular do planeta.

Atendimento personalizado no luxuoso Trem Vera Cruz da Central do Brasil, que fazia o trajeto BH - RJ.

Eu não tinha muito como ajudar, mas fui atrás de amigos que estivessem indo para o Rio de carro que pudessem lhe dar uma carona. Não consegui.

Faltando uma semana para o carnaval, perdi o contato com ele. Nenhuma palavra. Nenhum telefonema. Nada. 

Passado o carnaval, já em março daquele ano, fui ao hotel onde ele esteve hospedado e lá fiquei sabendo que ele havia retornado à sua terra natal.

O concierge do hotel me disse que ele havia voltado muito abatido e cansado do Rio de Janeiro, mas muito feliz.

- O quê? Ele conseguiu ir para o Rio de Janeiro? Como conseguiu?

- Ele tentou conseguir vaga em qualquer meio de transporte que estivesse disponível, como não conseguiu, foi de taxi. Ele me disse que vai voltar pra cá. Quer viver no Brasil. Disse-me o concierge.

Pois é... De acordo com o recepcionista do hotel em que ele ficou hospedado, ele foi de taxi “bara o Rio de Janeiro ver mulher belada ne rua no garnaval”.

O tempo passou e eu só tive notícias dele no início de 1989. Fiquei sabendo que ele fora à sua terra natal se desfazer de um casamento arranjado pela sua família, quando ele inda era criança e para conseguir dinheiro para seu casamento com uma brasileira. Ele já tinha encontrado sua amada brasileira e a havia deixado grávida aqui, impedindo qualquer reação contrária dos pais, que não admitiam ter um neto abandonado por aí. Assim o fez e foi ajeitar as coisas com a sua família para vir se estabelecer aqui no Brasil. Quando retornou, entrou em contato comigo e retomamos a amizade.

Eu me casei em 22 de julho de 1989 e, assim que eu e meu namorado decidimos as datas, liguei para ele para combinarmos um encontro a fim de que o entregássemos nosso convite de casamento.

Ele nos convidou para um almoço na casa dele. E nós fomos. Era domingo dia 16 de julho de 1989. Chegamos lá por volta de meio dia e a esposa dele foi quem nos recebeu. Estava linda e feliz com barrigão de quase nove meses de gestação.

Ali não nos recebeu de imediato. Perguntamos por ele e a esposa nos respondeu;

- Ele está no banho. Dormiu muito mal. Chorou a noite toda.

A essas alturas eu já estava achando que algo terrível pudesse ter acontecido ou que a nossa visita fosse o motivo da tristeza, mas perguntei.

- O que houve? Por que ele está tão triste?

- Porque o Maguila perdeu a luta de ontem.

Ocorre que em 15 de julho de 1989, Adilson Maguila Rodrigues – até então o maior lutador de boxe do Brasil e o segundo no ranking do Conselho Mundial de Boxe perdeu uma luta importante para o estadunidense Evander Holyfield, o primeiro lutador desse mesmo ranking. Ali não se conformou.

Quando adentrou à sala onde conversávamos com sua esposa, ele estava abatido, com os olhos inchados e muito emocionado. Tentei consolá-lo e ele me disse:

- Zilvia... Maguila é o melhor... Não bodia ter berdido luta! Tudo do Barasil bom! Barasil bom demais! Tem cuidar desse baís e non deixar ninguém brejudicar bovo barasileiro. Barasil bonito, colorido, feliz... Não bode berder felicidade. Non bode deixar otros roubar baís. Barasil non merece!

Conversamos muito naquele dia. Relembramos nossos tempos de Iraque e falamos de nossos planos de futuro. Ali estava convicto de sua escolha pelo “barasil”, mesmo tendo – segundo ele – decepcionado os pais por não cumprir o compromisso de se casar com a filha de um amigo da família. Estava melhor vivendo aqui.

Assim foi nosso reencontro depois de alguns meses.

Ele foi e está nas filmagens do meu casamento. A esposa, já às vésperas de ter o bebê, não pode ir.

Foi a última vez que nos vimos. Casei-me, fui viver no Amapá – onde morei por 6 anos e onde tive meus filhos.

Soube que ele também se mudou de residência, que teve 3 filhas nascidas em Belo Horizonte. Formado em engenharia do petróleo (curso que não existia no Brasil) soube que estava lecionando química numa escola de ensino médio e em um cursinho pré-vestibular. Fato é que nem eu e nem outros amigos dos tempos do Iraque tivemos mais notícias desse árabe que ama, respeita e admira mais o “Barasil” que qualquer outro brasileiro que eu já tenha conhecido nessas minhas 6 décadas de vida.

Deixo aqui todo meu carinho e respeito a esse árabe que tanto ajudou a cuidar e proteger a mim e aos demais brasileiros em terras iraquianas e espero que o “Barasil” lhe trate com o mesmo amor e respeito que ele dedica ao nosso país.

De todo meu coração, espero que ele esteja bem!

 

   

 

 

Comentários

  1. Minha amiga, que lição de reconhecimento das belezas existentes em nosso país, este árabe, na sua simplicidade, nos proporcionou através do seu texto maravilhoso. Viva o nosso Barasil!

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