OS PAPAGAIOS DO SERTÃO

Eram os anos 70 no Brasil. Acabávamos de ser tricampeões do mundo no México e a alegria reinava entre aqueles que ignoravam os bastidores sórdidos da ditadura militar, que imperava no país do futebol.
Naquele lugarzinho perdido no interior do Brasil vivia o Sr Guilherme e sua grande família. Conhecido na cidade como “seu Tiér”, aquele homenzinho franzino, de cabelos escorridos, casado com dona Idalina, cuidava de criar os 7 filhos sobreviventes - dentre os 14 paridos pela mulher - com o trabalho na antiga RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.). A vida era difícil. Muito trabalho e pouco dinheiro. As crianças muito cedo iam para a lida a fim de ajudar, tantos nos afazeres quanto no reforço do orçamento doméstico. Vendiam picolé, jornal, engraxavam sapatos e procuravam sempre, depois da escola, fazer alguma coisa que pudesse render alguns trocados a mais para aumentar os parcos ganhos familiares.
Fonte: https://encrypted-tbn1.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSdM22AB5B-52-TgI_7hka6a9hfAQDhon5aVodaV8nyjdLn2E9HeNu5zwo (acesso 
Por causa do trabalho, "seu" Tiér passava muitos dias fora de casa e, sempre que retornava out, , tinha novidades para contar dos lugares por onde andara. Nas noites de verão dos anos 70, como a TV ainda era um luxo para poucos, restava a rua e as brincadeiras das crianças, enquanto as famílias se reuniam na calçada para prosear e ouvir os “causos” de seu Tiér.
No final de 1970, seu Tiér foi escalado para trabalhar em pleno cerrado, na região centro-leste do Brasil. Era o sertão brasileiro tão ricamente descrito por Guimarães Rosa em “Grande Sertão, veredas”. As estórias que ele trazia de lá eram instigantes. Ele falava de uma terra diferente, com gente de sotaque carregado e uma comida cujo sabor era carregado de significados, na medida em que ele testemunhava a ferocidade com que a fome violentava homens, mulheres e crianças daqueles lugares. Ele sempre nos trazia histórias do lugar e falava dos buritis e das campinas onde os pássaros se aninhavam; das maritacas que passavam "tagarelando" procurando um pouso para dormir. Tudo isso impressionava os que o escutavam. Mais impressionados ficaram todos quando seu Tiér começou a descrever a paisagem e os animais que lhe faziam companhia nas solitárias noites insones vividas nos vagões-dormitório da RFFSA.
Certa vez, seu Tiér resolveu trazer consigo um papagaio. Era lindo e tinha as cores da bandeira brasileira, tão exaltada em tempos de ditadura e de euforia futebolística. Todos ficaram encantados com o pássaro. Com o passar do tempo o bicho, mais acostumado à nova vida e a prisão, começou a falar e a chamar os nomes das crianças da vizinhança. Era a glória! Bastou a notícia se espalhar para que as encomendas chegassem.
Fonte: http://www.cachorrofofo.com/wp-content/uploads/2015/04/Lindo-Papagaio1.jpg  (acesso 25 out. 2015)

A partir daí, seu Tiér começou a trazer dezenas de papagaios, facilmente capturados em armadilhas pelo sertão do Brasil, onde esse tipo de ave existia em grande quantidade. As crianças se encantavam com os coloridos pássaros e disputavam qual deles tinha o papagaio mais falante. Seu Tiér não os vendia. Ele fazia o transporte com cuidado e tinha um grande prazer em ver os olhinhos alegres das crianças com o presente. Era uma festa! Uma farra de papagaios que aprendiam a cantar, assobiar, chamar seus donos por apelidos que faziam todos rirem muito e que, com o tempo, passavam a viver soltos. Mas tão acostumados foram com a prisão e com a comida farta e fácil, que não fugiam.
Assim foi durante todo o ano de 1971, quando, em meados de 1972, seu Tiér foi mandado de volta para a sua cidade natal. Ele havia sido escolhido para trabalhar como chefe da estação local e já não viajava mais a trabalho como fazia antes. E assim se passaram mais de 10 anos. A maioria dos papagaios trazidos pelo “seu” Tiér já não mais vivia ou estava muito velhinha. As crianças, hoje jovens moças e rapazes, se ocupavam de outros afazeres e não dispunham de tempo para brincar ou cuidar dos pássaros.
Em meados da década de 80, quando os movimentos ambientalistas começaram a ganhar força no Brasil, “seu” Tiér viu na TV a seguinte manchete: “Desmatamento e tráfico de animais selvagens ameaçam a vida no cerrado brasileiro”. Foi um choque! Ele não podia acreditar no que estava vendo naquelas imagens. Áreas inteiras desmatadas e rios, antes caudalosos, agonizando em frágeis filetes de água. Na hora ele pensou: preciso voltar ao sertão. E ele o fez.
Marcou a viagem e foi em busca do saudoso e querido sertão. No local onde havia ficado com seus colegas de trabalho já não se via nenhum pássaro. “Seu” Tiér saiu em busca de explicações e ouviu o relato do povo do lugar que dava conta de que o desmatamento havia se intensificado com o avanço das carvoarias e que os bichos estavam morrendo de fome e por causa da poluição produzida pela preta fumaça dos fornos de carvão. Carvoarias poderosas, capazes de destruir matas, bichos, infâncias, dignidades, conforme lhe relatou a dona Divina, sertaneja genuína e valente. Sobrevivente em meio à toda pobreza e abandono que a seca é capaz de produzir.

Fonte: http://www.iar.unicamp.br/galeria/rmacedo/fornos_carvoaria_norte_Minas.jpg (acesso 25 out. 2015)

A dona Divina, sertaneja nascida e criada por aquelas bandas, com aquele delicioso sotaque dos que vivem no norte de Minas, lhe disse a mais avassaladora das notícias:
- Olhe sinhô, os bicho disapareceu tudo! Num dianta procura pelas araras, pelos passarin colorido, pelos papagaio que fazia a gente esquece que a barriga tava roncando de fome, quando imitava a gente. E o pió é  que a gente tá definhando junto com essa segura que o sinhô tá vendo aí. Antigamente nois num tinha os luxo que tem nas cidade grande, mais nóis tinha aqui a beleza enchendo os óio como só o Sertão pudia fazer. Hoje, nem isso tem! Os home foro levando os bicho aos pouquinho. Depois o povo das cidade grande e do istrangeiro inventaro de ter essas belezura em casa e viero aqui busca o que enfeitava o Sertão. É, meu sinhô, acho que pra nois daqui num tem escapatória! Pros que ainda num foro pra cidade grande, a sina vai sê mesmo  morrer nessa secura e sem um passarin que seja pra cantar nas janela de manhã. Acabou. Acabou tudo!
Quando dona Divina terminou de falar “seu” Tiér não conseguia respirar ou comentar a respeito de qualquer coisa que fosse. A culpa e o arrependimento lhe bateram como socos no estômago. Todas as lembranças daqueles tempos remotos lhe passaram pela cabeça como um filme. Lembrara-se de cada papagaio que havia tirado do Sertão e levado pra a cidade. Não os comercializara, é verdade, mas os tirara de seus bandos e de seu ambiente. O que “seu” Tiér havia feito na década de 1970, logo passaria a ser chamado de tráfico de animais silvestres. Entretanto, para ele isso nem era o pior. A maior vergonha era reconhecer que ele, sem querer havia contribuído para que as coisas chegassem àquele ponto. O que ele não entendia, pois havia tantos papagaios e pássaros na região que eles pareciam infinitos. Afinal, não faz tanto tempo assim!
Em 1989 “seu” Tiér morreu, depois de uma doença que lhe consumiu desde a sua última visita ao Sertão: a depressão. A tristeza que reinava naquele lugar, onde já não se ouvia mais a algazarra das maritacas e o colorido dos pássaros o perseguiu até a morte. Sua inocente irresponsabilidade de outrora resultou em destruição permanente de futuros animais e na extinção de espécies que tanto o alegraram no passado.
“Seu” Tiér morreu e hoje, seus netos Pedro e Ana, nascidos e criados na capital, tentam reproduzir, no trabalho da escola, o encanto e as cores dos papagaios que eles viram no calendário criado para arrecadar fundos e tentar salvar animais ameaçados de extinção.


Sílvia Regina Barbosa de Castro – 20/01/06

Comentários

  1. Viajei agora na saudade dos causos da minha infância. Saudades da vida e do pensamento simples que tínhamos. Saudades da ingenuidade com que olhávamos o mundo.
    Sempre fomos colônia de exploração e achávamos que era certo e necessário as agressões ao meio ambiente. Hoje quando vou a Itabirito, despida da minha inocência infantil, dói -me a alma cada pedaço da montanha carregada na caçamba dos caminhões e nos vagões do trem. Vejo Minas ir embora, levada como outrora foram levados os pássaros do sertão e minha dor é maior que a da D. Divina e do Sr. Tier porque sei que os pedacinhos da minha terra não farão brilhar os olhos das crianças.

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    1. Pois é, Roni, não sei se você se lembra dos papagaios que ele trazia do Sertão. Sempre que alguém pedia, ele trazia um. Não era um traficante de aves, como os que vemos hoje. Não havia maldade no gesto. Mas a ação, ainda que feita por amor ao que os papagaios representavam e à vontade de alegrar os que aqui viviam, contribuiu para a degradação.
      Ainda bem que ele, o meu pai, não viveu para ver os efeitos da degradação que enfrentamos atualmente. Conhecendo-o como nós o conhecemos, com seus valores e seu respeito à vida, certamente estaria acometido de grande peso na consciência. Enfim, éramos crianças. Como você disse, a inocência era parte de nós e a maldade não fazia parte de nosso dia a dia, assim como vemos hoje. Bons tempos...

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  2. Muito lindo o texto e tão bom ler pq viajei na história do vovô e alguns fatos eu não conhecia. Parabéns Silvinha!! Uma viagem no tempo e na historia da nossa família e tbm do Brasil. Que venham outros textos cheios de encantamento, deliciosa leitura, desenhando na imaginação as paisagens e as histórias. Amei! Bjs.

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  3. Obrigada, irmã! Fico tão feliz com sua visita. Ando meio aperreada, mas já já vou voltar aq2ui com força.
    Bjos

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