O CARNAVAL, O BRASIL E EU
Eu nunca escondi de ninguém o quanto sou apaixonada pelo Brasil e, principalmente, pela nossa riquíssima cultura. Para mim, a mais rica do mundo!
Só pra dar uma
ideia àqueles que ainda duvidam e acham exagero de minha parte, pensemos no ritmo que representa o país, ou seja, o samba. Podem-se encontrar inúmeras variações desse ritmo que é, sem
dúvida, a cara do Brasil: samba-canção; samba de partido alto; samba de
gafieira; samba de breque, samba-choro; samba-enredo; pagode, samba-de-roda,
entre outros que não me recordo agora.
Entretanto,
não somos só isso. Por aqui é tudo misturado: a comida, a bebida, as três raças
que deram cores e sotaques a essa nova “raça” chamada povo brasileiro.
Somos um povo
talhado pelo sofrimento dos que aqui chegaram e, especialmente pelos pretos
africanos que foram trazidos a força para serem escravizados e pela indiferença
covarde diante da violência dos nossos opressores e daqueles que,
“embranquecidos” pela miscigenação, passaram a se enxergar como parte
integrante da Casa Grande.
Tá... Mas qual
a relação disso com o carnaval, você pode estar se perguntando?
O carnaval é a
nossa maior festa. É a que apresenta a maior diversidade de ritmos, de cores e
de nossos modos de viver a alegria. É um momento de catarse coletiva inigualável.
Mas não é só
isso.
O carnaval tem
se transformado, cada vez mais, num momento de protesto, de desabafo, de
congraçamento e, principalmente de reflexão e aprendizado.
Nesse ano de 2024, por exemplo, tivemos um carnaval que veio para nos fazer pensar em tantas coisas, confrontar nossos desacertos sociais, especialmente no que se refere ao feminino, ao matriarcado predominantemente preto, que faz esse país sobreviver!
Sim, é esse matraiarcado periférico que - aceitem ou não - tem carregado boa parte do peso desse país nas costas. Mulheres que, mesmo diante da pobreza, do abandono, do racismo, da
indiferença dos truculentos que matam seus filhos como se nada fossem. Sem
drama de consciência. Muitas vezes, negando às matriarcas invisibilizadas, ora
pelo poder político e financeiro, ora pela sociedade embranquecida pela
miscigenação, o acesso aos corpos assassinados de seus “bebês”.
No primeiro dia dos desfiles das Escolas de Samba do RJ, eu fiquei
muito comovida com o desfile do SALGUEIRO, que deu voz ao povo Yanomami, sempre
ignorado pelos sucessivos governos brasileiros, mas especialmente massacrado
pelo desgoverno Bolsonaro. Um desfile lindo, impecável, com um samba forte e
uma letra, composta por Pedrinho Da Flor / Marcelo Motta / Arlindinho Cruz / Renato
Galante / Dudu Nobre / Leonardo Gallo / Ramon Via 13 / Ralfe Ribeiro, que dispensa explicação:
Eu já estava
convencida de que não haveria qualquer outra possibilidade de surgir outra
escola, com a capacidade de superar aquele desfile que me comoveu tanto!
Bom, na minha cabeça já estava tudo decidido, mas eu quis assistir aos
desfiles da segunda noite para ver as outras escolas (as “sem chance”, segundo
o MEU julgamento) e, armada da minha arrogância, estava ali na sala, com minha filha,
dando às escolas daquela noite o privilégio da minha audiência, até que veio o
desfile da PORTELA.
Meu Jesus!!! O que foi aquilo? Não foi um rio que passou em minha vida
– como cantou Paulinho da Viola – foi um tsunami de emoções que invadiu minha
sala e deixou a mim e a minha filha aos prantos.
O enredo baseado no livro “UM DEFEITO DE COR” da ANA MARIA GONÇALVES,
que conta a história de uma mulher africana idosa,
cega e à beira da morte, que viaja da África para o Brasil em busca do filho
perdido há décadas. Ao longo da travessia, ela vai contando sua vida, marcada
por intenso sofrimento.
Mãe e filho foram separados nos tempos da escravidão no
Brasil, que deixou como legado para esse país miscigenado, um racismo
estrutural enraizado, cruel, violento que, como narrou o enredo de modo
brilhante, continua tirando os filhos das mães pretas, das matriarcas negras
que, em boa parte, seguem criando sozinhas suas filhas e filhos, superando todas as
toneladas de dificuldades diárias que o mundo despeja sobre essas mulheres
guerreiras. O último carro alegórico nos mostrou isso como se fosse o tapa na
cara com que a polícia, quase sempre, saúda os filhos pretos periféricos do Brasil, ao
encontra-los nas ruas e becos do país.
Em mim e em minha filha, esse enredo bateu forte
demais, porque vivenciamos essa angústia com meu irmão Nando, falecido em 09 de
dezembro de 2024, graças a Deus, de causas naturais. Graças a Deus porque ele poderia ter sido mais um preto nas estatísticas dos jovens pretos abatidos pela violência.
Eu e meus familiares consanguíneos, fazemos parte da população brasileira embranquecida pela miscigenação e, como tal, desfrutamos de nossos privilégios de brancos que somos (pelo menos aqui no Brasil, né?), mas o Nando era nosso irmão do coração e era preto e, como tal, viveu algumas situações de constrangimento que nenhum de nós foi submetido em nenhum momento de nossas vidas.
Seja o meu filho, marido, irmãos e meu pai,
jamais sofreram qualquer abordagem policial que não fossem as blitz das polícias
de trânsito. Não foi o caso do Nando que, mesmo antes da maioridade foi
abordado por policiais por estar andando na SUA bicicleta, sem camisa, no
bairro Floresta em BH, nos anos 1980, por suspeita de ser ladrão da própria bicicleta, aos 13 anos
de idade.
Uma das lembranças mais fortes que trago em mim foi nossa primeira viagem em família, em janeiro de 2009, para a cidade de Poços
de Caldas – um lugar que amamos ir e para onde já voltamos algumas vezes. Pois
bem, era uma viagem com toda a família (irmãos, cunhado, sobrinhas, etc) e, obviamente o Nando foi conosco e eu me lembro que todos nós – incluindo meus filhos, que
eram pré-adolescentes nessa época – jamais o deixávamos sozinhos no hotel ou
caminhando pela cidade.
Não tínhamos nada combinado entre nós. Era um pacto
velado, silencioso, sem que ele percebesse o nosso medo de que ele fosse
destratado por quem quer que fosse, pelo seu “defeito de cor”.
Lembro-me sempre dos meus pais e de nós, seus irmãos
(ele era nosso caçula) sempre a alertá-lo para que não saísse sem camisa para brincar na rua. Quando ele cresceu um pouco mais, o alerta era para que ele não
saísse desarrumado. E, nesse “desarrumado” tinha que observar se não estava
calçando um tênis muito caro, porque isso também podia ser um agravante para
uma abordagem policial, digamos, menos afetuosa. Esses foram cuidados que nenhum de nós jamais precisou ter ao sair às ruas, mas com Nando era diferente. Tinha que ser assim,
É disso que se trata quando se fala no racismo
brasileiro. Meio que disfarçado pela miscigenação, ele foi se ampliando e
contaminando os embranquecidos por ela, fazendo com que parte desses
embranquecidos ignorem a própria origem e transformem-se na mesma voz opressora, que
endossou a violência que torturou nossos ancestrais africanos e os indígenas.
Todos esses sentimentos me tomaram quando os tambores
da Portela silenciaram. Chorei. Choramos, eu e minha filha.
Hoje, revendo as reportagens, voltamos a nos emocionar
e realimentar as emoções de termos nascido brasileiras. A tristeza de saber
que, entre nós, ainda há quem julgue o outro pela cor da pele e, ao mesmo
tempo, saber que não estamos de braços cruzados. Estamos na luta. Pode não
parecer, mas o carnaval também pode ser revolucionário. Talvez aí esteja a nossa grande revolução, que virá armada por essa rica cultura que nos dá identidade e por uma alegria que não se rendeu à alienação.
E já adianto, aceito todas as críticas a esse meu ufanismo - de certo modo, condescendente - mas reafirmo
que tenho sim um olhar romântico sobre meu país e a minha gente. Sou muito
orgulhosa daquela parte significativa de nós brasileiros e brasileiras que não se envergonha de ser quem é, do sotaque que traz, dos ritmos que dança, dos sabores e desse jeito mais feliz de ver a vida, a ponto de transformar nossas dores e nossas mazelas em arte. É lindo ver que não nos furtarmos a nos valer
da alegria para, com ela, refletirmos sobre temas tão imprescindíveis.
Sim, eu entendo toda a gana capitalista para transformar em produto tudo o que existe, incluindo as nossas causas. Entretanto, prefiro olhar para os desfiles da PORTELA e do SALGUEIRO como um grande, rico e abrangente seminário, que nos instiga ao debate, à reflexão e a busca de soluções urgentes para os nossos caos cotidianos. Sei que ali estão dois ícones do samba brasileiro, esse ritmo que a nossa ancestralidade africana nos legou e que nos faz tão soberbamente ricos, em termos culturais, mas vou optar, nesse caso, por enxerga-las, antes de tudo, apenas como ESCOLAS, que nos ensinaram muito mais que samba no pé nesse carnaval.
Que vençam as duas! Essa é a minha torcida, mas se não
vencerem, já serei eternamente grata por terem não só me emocionado, mas por alimentarem meu amor e meu orgulho de ser essa brasileira, ciente de que a luta é árdua, brutal, mas que nós não nos renderemos ao desânimo. Afinal, de luta a gente entende e é até capaz de travá-la cantando, pois até a luta marcial ensinada pelos escravizados, a capoeira, não pode ser jogada sem música. Venceremos, pois a alegria também é uma forma de resistir e sempre será a nossa arma secreta contra a opressão!
Silvia querida amei !!!
ResponderExcluirVocê arrasou !!! Fiquei emocionada pois também estava na torcida pela escola Salgueiro… Mas a Portela!!!🎵🎵🎵Ah minha Portela!!!!🎵🎵🎵
Parabéns amiga você deu um depoimento muito real da situação de nosso país , que amamos tanto,
Muito obrigada. Pena que você não deixou o seu nome aqui para eu agradecer de modo ainda muito mais afetuoso seu carinho e consideração.
ExcluirVocê é foda....
ResponderExcluirAh, sou eu, Flavia Santiago...
ExcluirAh Flavinha, muito obrigada, minha amiga linda!
ExcluirSaudades de você, viu?