MINHA VIDA NO IRAQUE, NOS TEMPOS DE SADDAM HUSSEIN- CAPÍTULO 3

 

Capítulo 3: Sufoco e medo no hospital de Nassiryah

Como contei nos capítulos anteriores, nós éramos bem tratados pelos iraquianos, na maior parte do tempo. Não sei se por eles, de fato gostarem de nós, ou se era por imposição do presidente Saddam que, sendo um ditador cruel (e, de minha parte, não é maniqueísmo influenciado pelas mídias ocidentais pós-guerra do Golfo de 1991. Eu juro! O cara era um monstro!). Ele era implacável, especialmente com a população islâmica xiita, numericamente majoritária, que se concentrava, especialmente, na região sul do país.

A cidade de Nassiryah, onde ficava a Vila Sifão, se localizada nessa faixa centro-sul do Iraque e abriga, ainda hoje, população predominantemente xiita.

Quando assumiu o poder em 1979, depois de dar um golpe de Estado que destituiu o poder do presidente Ahmed Hassan al-Bakr, Saddam implementou no Iraque, uma ditadura das mais autoritárias e  truculentas. Seu primeiro ato ao chegar ao poder foi “expurgar” do seu partido Ba’ath cerca de 70 membros por ele considerados “desleais”, promovendo a execução de 22 desses seus ex. colegas.

Saddam foi também especialmente tirano com os iraquianos xiitas, sempre vistos como potenciais traidores do regime, por não compartirem com o presidente sunita, do mesmo viés religioso dentro da doutrina islâmica.

O mesmo ocorreu com a população da etnia curda que vive no Norte do Iraque. Os curdos formam a maior nação desterritorializada do planeta, ocupam o norte do Iraque, noroeste do Irã, leste da Síria e da Turquia. Por não deterem a soberania dos territórios ocupados há séculos (muito antes da colonização europeia no Oriente Médio) estão sempre subjugados ao sabor das mudanças geopolíticas dos governos de cada um desses países. Por isso, vivem sempre no fio da navalha.


Os curdos foram vítimas de um ataque covarde com gás mostarda e gás sarin na cidade de Halabja. O ataque ficou conhecido também como Massacre de Halabja, ou Sexta-feira Sangrenta, ocorreu no dia 16 de maio de 1988. A guerra Irã-Iraque chegava ao fim quando Saddam Hussein utilizou suas armas químicas, para remover curdos de cerca de 40 vilas no norte do Iraque. 

Naquele momento, pelo fato de Saddam ser um importante aliado estadunidense no Oriente Médio, o mundo ocidental fechou os olhos para mais esse genocídio. No entanto, usou-o como justificativa para condenar, por crime de guerra, o presidente Saddam executando-o em 2003, após a II Guerra do Golfo.

Viver no Iraque, em tempos de comunicação precária (demorávamos dias para conseguir completar uma ligação telefônica para o Brasil), sem falar o idioma local e sob o regime ditatorial de Hussein, nos deixava alheios a essas informações. Como elas não chegavam até nós a gente tinha a impressão – pelo menos dentro da vila – que a vida dos iraquianos seguia seu curso normal, sem grandes atropelos. Ledo engano!

Entretanto, com o passar do tempo, à medida que fui viajando pelo Iraque e conhecendo o país, ficava muito claro para mim certo descaso do Saddam Hussein com a população iraquiana sulista, especialmente quando se comparado ao que se observava no restante do país.

Além disso, as marcas da guerra estavam em todos os lugares: das baterias antiaéreas nos telhados das residências de Nassiryah ao grande número de jovens mutilados e a profusão de caixões amarrados nos tetos dos taxis, enrolados na bandeira iraquiana, para fazer a entrega dos corpos às famílias dos combatentes. 

Ainda que Nassiryah fosse uma cidade relativamente grande, capital de província, assim como BH é capital de MG ou Salvador é capital da Bahia, por exemplo, a cidade tinha esgotos a céu aberto, inclusive à frente do principal hospital da cidade.



Lembro-me que, em 1987, ano em que vivi lá, a AIDS era a epidemia da vez. Por isso, entre os exames exigidos para obter o visto de trabalho no Iraque, estava incluso o do HIV, além das vacinas obrigatórias para ter autorizada a nossa entrada e permanência no país. Nós contávamos com um ótimo hospital na vila e profissionais de primeira linha para assegurar a nossa boa condição de saúde. Entretanto, isso não foi suficiente para o governo iraquiano que exigiu que refizéssemos os exames no hospital deles, com os profissionais locais.

Tudo bem. Éramos as visitas que estávamos na casa deles e devíamos seguir as regras que eles criaram. E lá fomos nós!

O hospital ficava num bairro próximo ao centro da cidade e não lembrava em nada os hospitais mais fuleiros e mal cuidados das regiões mais pobres do Brasil. Talvez fosse por causa da guerra. Afinal, o campo de batalha onde os iraquianos e os iranianos se matavam cara a cara, olho no olho, ficava nos arredores da cidade de Basra, a maior cidade do sul do país.

Basra é uma espécie de Campinas iraquiana, ou seja, a grande metrópole do sul do Iraque, com boas instalações urbanísticas e serviços mais diversificados. Além disso, Basra era a porta de entrada do Iraque, para quem acessa o país pelo Canal Shat Al Arab - alvo da disputa entre Irã e Iraque na guerra. Sendo assim, os feridos de guerra eram levados para hospitais dessas duas cidades maiores, que dispunham de melhor infraestrutura e recursos em saúde. Talvez seja esse um dos motivos que me levou à situação dramática que assisti naquele hospital e relato a seguir.

Logo em minha primeira semana no Iraque veio a ordem para que refizéssemos os exames trazidos do Brasil. E lá fui eu com outros recém-chegados trabalhadores da obra para repetir os tais exames.

Chegando ao hospital, que estava lotado, entrei numa salinha e indicaram-me uma cadeira, com braço de apoio para coleta, onde eu deveria me acomodar para a punção do meu sangue. A cadeira estava empoeirada e com aspecto esgarçado. Quando o enfermeiro veio fazer a coleta, pegou um retalho de gaze suja de sangue seco, para usar como torniquete a fim de garrotear a minha veia. Olhei aquilo incrédula e me recusei a ceder meu braço para o procedimento, sob protestos do enfermeiro! 

Pensa que acabou? Sabe de nada, inocente... Ele queria usar em mim uma seringa de vidro daquelas de antigamente, que não estava devidamente esterilizada.

Hospital Al Hussein em Nassiryah - foto de 2017

Fonte: https://ichef.bbci.co.uk/news/976/cpsprodpb/704E/production/_97805782_7774d7b8-43c8-4888-928c-cf3bfa9df64f.jpg  (acesso 02 de mar. 2022)

Para o exame de urina, uma das atendentes pegou um frasco de plástico que estava por ali, lavou-o numa pia e me entregou, com toda a naturalidade do mundo, já me indicando o banheiro que eu deveria usar para recolha do meu xixi. Esterilização? Pra quê? Que bobagem é essa? Isso é frescura de brasileiro metido a higiênico, ora bolas...

Aí entrei em pânico!

Pensei: se até então eu não tinha o vírus HIV, a chance de esses procedimentos inadequados (para dizer o mínimo) transformar o meu corpinho, que à época era esbelto, saudável e até bonitinho, numa Disneylândia para todo tipo de vírus, bactérias, fungos e afins seria questão de horas... O que seria de mim? Queriam me transformar numa cobaia humana para doenças múltiplas? Teria eu uma cara de rata de laboratório? Que é isso, gente? Desse jeito eu ia virar o sonho de consumo dos pesquisadores e dos laboratórios farmacêuticos desse planeta. Uma aberração de deformidades.

E eu fiquei ali paralisada, em choque, sem falar uma palavra em árabe e sem entender nadica de nada do que falavam a meu respeito. Eu não sabia se chorava, se corria, se gritava ou se saía no braço com aquela enfermeira, correndo o risco de deflagrar um conflito Brasil X Iraque.

Eu estava apavorada! Além disso, sendo mulher num país islâmico – mesmo modernizado como era o Iraque da época, onde as mulheres estudavam, trabalhavam fora de casa e eram livres para vestir roupas ocidentais – eu não teria voz, ainda que falasse em árabe. Calada eu já estava errada!!!

Ah nãooooo!

Quando consegui me recompor, chamei pelo intérprete palestino e o médico que nos acompanhavam, que já estavam tentando resolver a trama macabra com a direção do hospital. Meus companheiros sugeriram fazermos os exames no hospital da vila e enviar os resultados assim que ficassem prontos.

Logicamente isso não foi aceito em nenhuma hipótese. Depois de muitas discussões e negociações, resolveram que traríamos o material descartável para coleta e os profissionais de saúde iraquianos fariam os exames. E assim foi feito na manhã seguinte.

Eu saí dali aliviada e perpleza com o que vi e, ao mesmo tempo, agradecida por poder usufruir de outras condições sanitárias, tanto na vila Sifão, quanto no lugar de onde saí aqui no Brasil.  Embora reconheça minha condição de pessoa branca, da classe trabalhadora brasileira assalariada, que desfruta de muitos privilégios negados aos trabalhadores mais pobres que eu e outras categorias minorizadas, entendi o quão mais avançada eram as condições da saúde no Brasil - mesmo naquela época.

Mas no final deu tudo certo e os exames trouxeram só bons resultados: 

Ah... E eu não tinha HIV! Ufa!

 

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

QUEBRANDO A REGRA E BATENDO TAMBOR PRA MALUCO DANÇAR

O CARNAVAL, O BRASIL E EU

CARTA ABERTA AOS MEUS FILHOS, ALUNOS, SOBRINHOS E AOS JOVENS EM GERAL.