MINHA VIDA NO IRAQUE, NOS TEMPOS DE SADDAM HUSSEIN- CAPÍTULO 5
Capítulo 5:
No meio do caminho
para Bagdá tinha uma prisão e os prisioneiros fomos nós!
O
Ramadã é um período que marca um mês
inteiro de jejum, orações e cerimônias religiosas. O respeito ao Ramadã é próprio da religião islâmica que
tem por objetivo aproximar os seguidores do Profeta Mohamed (ou Maomé) ao Deus
Alá e lembrá-los do sofrimento dos menos favorecidos e assim, incitá-los à
prática também do Zakat.
Traduzido
de modo equivocado como “dar esmola”, o Zakat
é uma espécie de “dízimo” pago anualmente (cerca de 2,5% dos ganhos de cada
muçulmano), que será usado para ajudar os menos favorecidos daquela comunidade
islâmica, a qual o fiel pertença.
O
Ramadã não tem uma data fixa, pois
segue o Calendário Islâmico que é baseado no ciclo lunar, embora comece sempre
no nono mês do ano e seu tempo às vezes varia de local para local. Um Imã
(sacerdote muçulmano) irá declarar o tempo exato do Ramadã antes do seu início. Durante
esses dias, os fiéis não podem
comer enquanto o Sol brilhar. Assim, o jejum começa ao nascer do Sol e termina
depois que o Sol se põe. Durante essas horas, os muçulmanos não podem comer ou
beber nada até que a noite venha. Só estão isentos dessa prática os que estiverem
doentes, convalescentes e as crianças.
Seu
início e seu final são marcados por um feriado que, quando coincide com outras
datas (início de férias escolares, dia do Trabalhador, etc., pode se tornar um
feriadão em todo o país), o que ocorreu em 1987.
Pois
bem, aproveitando esse feriadão, bem antes da minha chegada ao Iraque, a Edna, professora de química (que também era
minha companheira de quarto no hotel 56A) e a Valéria, (professora, artista maravilhosa e
grande parceira de vida, que tem me ajudado a sobreviver, com alguma sanidade,
nesses atuais tempos de trevas que vivemos), já haviam combinado de passar o feriado em Bagdá e me chamaram para acompanha-las. Logico
que aceitei prontamente. Afinal, já que eu estava tão longe de casa e já tinha
sobrevivido àquela saga, em forma de viagem, que me trouxera até ao Iraque, agora queria fazer valer
todo o sufoco vivido e não perderia oportunidade de conhecer o máximo que pudesse do país. O Iraque que me
aguardasse, Eu tinha sede de aventura e ia tirar a barriga da miséria!!!
A
viagem já estava bem planejada. A Mendes Jr. cedeu dois carros para nós cinco:
eu, o Alouí – um tunisiano que era um
dos nossos intérpretes – a Edna, o Alfredo (um dos engenheiros da obra, que
namorava a Edna) e a Valéria. Nessa época eu ainda não namorava oficialmente o
Elias.
No Iraque, todos os carros de passeio usados pela empresa eram da FIAT, mais precisamente do modelo FIAT 147, devidamente equipados com ar condicionado adequado às elevadíssimas temperaturas do alto verão iraquiano e aquecimento para os meses de inverno.
Assim,
nos dividimos nos carros: num deles iriam Valéria e Alouí; no outro, o Alfredo,
a Edna e eu. Eu estava animada porque, o roteiro da viagem feito pelas meninas
e aprovado pelo Alfredo e pelo Alouí,
previa uma parada nas ruínas da Babilônia.
E
assim foi.
Depois
de umas 4 ou 5 horas de viagem, entramos pelas ruínas do que fora a morada de Nabucodonosor,
o grande e mais famoso mandatário da Babilônia. Uma emoção para aquela caipira mineira que,
sem entender a grandiosidade do privilégio que era visitar um lugar
tão importante para a história humana, se deu ao luxo de se sentir enganada por
não encontrar os jardins suspensos, repletos de flores e plantas diversas.
(Nitidamente coisa de caipira inculta e absolutamente desprovida do mínimo
senso da minha real insignificância e de minha limitada visão de mundo naquela
época, não é?).
Vista aérea da Babilônia
Olha
se isso faz sentido, minha gente! Olha a petulância da caipira itabiritense, se
achando no direito de ficar decepcionada com a Babilônia! Um acinte, não é?
A entrada da Babilônia é acessada por um Portal gigantesco, lindíssimo e, de fato, é muito impactante de ver (ou era, já que não sei se as invasões dos EUA e dos europeus o destruíram). Com desenhos em relevo e pintado num azul forte, que não perdeu a cor nem sob o Sol escaldante do verão mesopotâmico. Aquilo era um deslumbre!
No
entanto, passado o portal, tudo tem a mesma cor do deserto que o cerca,
incluindo as estátuas carcomidas pelo tempo e pelo descaso com aquele
patrimônio mundial da humanidade, exatamente como ocorre com a maior parte do
acervo histórico brasileiro.
Um
dos guias do lugar foi explicando-nos
algumas lendas que existem sobre aquele lugar, como aquela que trata da filha
de Nabucodonosor, representada numa
estátua em que ela está deitada sob um leão. Segundo o relato do guia, ela queria ter um
filho tão forte quanto um leão e, por isso, resolveu transar com o bicho.
Genteeee???
Como
assim? E eles ainda fazem e expõem uma estátua com esse tipo de aberração?
Mas
fizeram. Podem conferir na foto que eu tirei próximo a essa estátua, para não
dizerem que eu estava entorpecida de “araca”
(nome que os brasileiros chamavam a bebida alcoólica feita de tâmaras) e vendo
coisas indevidas. Duvida? Taí a prova!
A
Babilônia se localiza a cerca de 110 km de Bagdá, assim sendo estávamos perto
do nosso destino. Havíamos saído bem cedinho da vila Sifão e teríamos tempo
para chegar à capital sem correria, mesmo depois da visita às propriedades do
imperador mesopotâmico famoso. Além disso, íamos pela expressway, um tapete feito de asfalto lisinho, com pistas amplas cortando o deserto. Praticamente sem curvas. Não havia com o que se preocupar,
pensamos.
Ledo
engano.
A questão é que, viajando pelo Iraque, muitas vezes eu tinha a impressão de que estava vivendo dentro das páginas da Bíblia ao ver homens de túnicas, turbantes, sandalias de tiras de couro de carneiro entrando nos belos e velozes carros nipônicos.
Não sei se pela qualidade dos carros
japoneses que circulavam, em sua maioria, pelo país, ou se pela qualidade das
rodovias federais, ou quem sabe, pela confiança de se verem como exímios
pilotos, o fato é que iraquianos e kuaitianos (que também circulavam muito pelo
país), dirigiam loucamente.
Eu
os via vestidos em suas túnicas e com seus turbantes entrando nos carros, arrancando bruscamente, fazendo cantar os pneus e eu me
pegava pensando:
- Socorro, Senhor! Abraão vai dirigir!
Ai Jesus... Moisés pegou a chave do carro!
Que Deus
ajude aos que cruzarem com eles!
Apesar
disso, os acidentes não eram muito frequentes no país. Raríssimas vezes eu vi
uma colisão nas ruas e estradas iraquianas. Mas justamente naquele dia, quase
chegando ao nosso destino, presenciamos uma batida daquelas...
Acontece que estamos falando de uma área de
oásis e, por ser assim, são áreas adequadas à criação do que em árabe, chamam
de haruff (ou ovelha) onde os homens e, em alguns casos, as mulheres (afinal os
homens iraquianos estavam, em sua maioria, incumbidos – por Saddam – de se matarem e exterminar os iranianos na guerra, não é?).
Eu e as ovelhas de um pastor que vivia numa propriedade rural próxima à nossa vila.
Além
dos haruffinhos havia também os camelos e dromedários que, vez em quando
resolvem dar um rolê pela rodovia e aí, se você encontra esses bichos numa
curva ou numa ultrapassagem mal plenejada, a partida para o “Plano Espiritual” quase sempre é certa.
Agora
imagina esse encontro em altíssima velocidade...
Pois
foi o que aconteceu. Não conosco, mas com outro veículo.
Não
vimos o acidente de perto. Não estávamos nem perto do local onde o mesmo
ocorreu, mas nos chegou a notícia de que uma caminhonete havia atropelado um
camelo.
Acontece
que, mesmo a estrada sendo muito reta, os carros que vieram atrás não
conseguiram brecar a tempo e houve um baita engavetamento. E por azar, nós estávamos bem
atrás. Só que não chegamos a bater em ninguém. O Alfredo, muito habilmente, conseguiu
desviar para o acostamento, mas o carro do Alouí encostou num dos carros de um
iraquiano que estava à nossa frente. Não houve nada. Nem um arranhão no carro
do iraquiano e tampouco no nosso.
A
questão é que nós éramos os únicos estrangeiros envolvidos no quiproquó... E
éramos funcionários da Mendes Jr., uma empresa que tinha certo poder e
prestígio dentro do Iraque. A polícia local não poderia deixar passar, afinal a
tal corrupção policial, que existe em qualquer lugar onde houver um policial da raça
humana, não deixaria escapar os policiais iraquianos, não é? (Tá... Eu sei que há lugares em que esse tipo de coisa é raro,
mas pode apostar, é por falta de oportunidade ou por medo da punição – quando
ela existe).
Mas
advinha quem, em toda essa história foi levado para o Kalabouth, ou para a delegacia?
Acertou se você achou que foi Euzinha e meus amigos recém-conquistados!
E
lá fomos nós escoltados pelos guardas iraquianos para uma delegacia localizada nas proximidades da cidade
de Najaf – se não me engano.
Era
um prédio térreo, com paredes descascadas, mas tudo estava limpo. Separadas do
Alouí e do Alfredo, eu, a Edna e a Valéria fomos levadas para sala pequena,
onde nos ofereceram água fresca e nos deixaram ali por algumas horas.
Tudo
que eu me lembro é de ouvir o Alouí tentando argumentar com os guardas,
mostrando o absurdo de nossa detenção, tudo bem no "sereno" jeito árabe de conversar:
sempre de modo enfático, com gestos ameaçadores e no máximo volume. Era como se fosse uma disputa de qual dos dois teria o berro mais eficiente para colocar o outro diretamente nas chamas ardentes do mármore do inferno islãmico.
Depois
de uma quase briga que me fez acreditar que desfrutaríamos do sistema prisional
iraquiano por algum tempo, Alouí
chegou com a novidade:
-
Eles vão nos liberar assim que a Mendes Jr. pagar uma espécie de fiança que
exigiam para nos soltar.
-
Como assim? Nós não cometemos crime, porque a exigência de pagamento?
Pois
é...
Não
sei se a empresa pagou e nem o valor desse imbróglio, mas após o contato com a
Mendes por meio de um longo telefonema, com a intermediação do nosso querido Alouí, fomos liberados e retomamos a
nossa rota. Já estávamos bem perto da capital iraquiana.
Em Bagdá iríamos ficar no que chamávamos de “Casa da Volks”, que era uma espécie de república onde viviam alguns representantes brasileiros da Volkswagen do Brasil para negócios no Iraque, que sempre hospedavam trabalhadores brasileiros em passagem pela capital do país.
A
casa ficava num bairro de classe média alta, com ruas bem cuidadas e comércio
moderno. Em nada essa parte da cidade indicava que aquele país estava em
guerra.
No
dia seguinte fomos perambular pela cidade. Bagdá era uma cidade linda tanto à
noite, com suas luzes douradas sobre as praças e ruas, quanto de dia,
especialmente as áreas marginais do rio Tigre, que corta a cidade.
À
noite fomos à boate do hotel Al Rasheed.
Você
pode estar se perguntando:
-
Ora... Mas uma boate tem danças, namoro, pegação, bebida alcoólica... Isso não é
proibido pelo islã?
Respondo:
- Sim. EM TESE, muçulmanos são proibidos de beber. São as regras. Mas espera aí, cara pálida, estamos falando de um hotel de luxo, com diárias caríssimas, que era frequentado, especialmente, pelas elites do Iraque, da Jordânia, do Kuwait, por jornalistas estrangeiros e turistas. Sendo assim, talvez eles acreditem que Alá e o Profeta Maomé façam vistas grossas a esses pequenos delizes. Sabe como a carne é fraca, né não?
Ah... E não tinha só a boate, tinha também um cassino no 8º andar desse hotel.
Qual o problema? Nesses casos, é gente rica transgredindo, né? Rico pode! Parece que o Alah que alguns muçulmanos acreditam é parente do mesmo "Jesus" da arminha que tem participado de uns cultos e missas aqui pelo Brasil de 2022...
Se investigar bem, talvez descubram que esse Alah e o Jesus do Brasil 2022 são a mesma pessoa. Vai saber, não é?
Só
para recordar: esse foi o hotel que, depois da invasão dos EUA ao Iraque em
1991, Saddam mandou colocar um tapete na entrada principal, com o rosto do George Bush (pai).
Ocorre
que, mostrar a sola do pé para um desafeto, ali pelas bandas do Oriente Médio, é como mostrar o dedo do meio em
riste aqui no Brasil. Então já viram... NINGUÉM entrava no Al Rasheed sem pisar no rosto do líder estadunidense, tornado
inimigo do Iraque pós-invasão, sem lhe prestar essa singela "homenagem" em nome do povo iraquiano.
Obviamente, passeando pela linda Bagdá – guardando as limitações tecnológicas da época – tiramos fotos dos lugares em que passamos, mas nossos filmes foram confiscados pela polícia.
Havia muitas restrições para tirar fotos em Bagdá, segundo a polícia, “para garantir a segurança do povo e do lugar”. Como naqueles tempos as fotos dependiam de filmes, revelações, boas máquinas fotográficas, etc. poucos registros tenho da capital. Pura sacanagem policial com aquelas pessoinhas tão inocentes e cheias de alegria e vontade de registrar nossa passagem por Bagdá, né não?
(Explicando aos mais jovens: houve um tempo em que, para fotografar algo, precisávamos inserir filmes numa coisinha chamada máquina fotográfica, para depois dos registros, levar os negativos - nome dado aos filmes depois de registrar as imagens neles - para revelar. Só então podíamos saber se a foto ficara boa, se não ficamos com olhos fechados, se a pose ficara legal, se o filme havia rodado na máquina de modo correto... Sim... era burocrático e, em boa parte das vezes, negativamente surpreendentes.)
Entre
as poucas fotos de Bagdá sobraram apenas as do Monumento ao soldado desconhecido que, além do túmulo de um dos soldados,
era também um museu em louvor à essa insanidade que chamamos de guerra. Tudo de
gosto muito duvidoso: capacetes com furos de bala, uniformes com manchas de
sangue, armas de todo tipo, até mesmo tanques de guerra (um deles, em
exposição, era um presente do governo brasileiro da época ao “grande líder Saddam
Hussein, por ocasião de seu aniversário de 50 anos”, como dizia a placa escrita
em árabe, inglês e português).
De
volta para a vila Sifão, passamos pela cidade de Karbala.
Karbala é uma cidade que tem para os muçulmanos do
Iraque a mesma importância que a cidade de Aparecida do Norte tem para os
católicos brasileiros.
A
cidade estava agitada. Muita gente pelas ruas que eu acredito fossem
peregrinos. As mesquitas erguidas em construções imponentes, com minaretes
reluzentes entoavam cânticos com os versos do Alcorão em alto som, que enchiam as ruas. Ali naquela cidade, mesmo a habaia
não sendo vestimenta de uso obrigatório para as mulheres, todas as usavam.
Inclusive as crianças. Vi meninas de 4, 5, 6 anos com o chador encobrindo as
roupas ocidentais e outras apenas com os cabelos recobertos por véus.
A viagem de volta foi tranquila. Sem sobressaltos. De todo modo, eu não me aventurei outra vez em Bagdá. Só voltei à cidade no dia 17 de dezembro de 1987, quando peguei o voo da Air France de volta para o meu aconchego aqui em BH. Restringi minhas andanças pelo país, em grupos pequenos, às idas à Nassiryah e às cidades próximas. No mais, só em grandes grupos com alunos e famílias.
Eu já tinha conhecido o Kalabouth iraquiano de perto e, de boba, eu só tenho a cara e o jeito de andar... Achei melhor não me arriscar demais, não é mesmo? Afinal, eu sou pobre, mas sou limpinha e não estava a fim de gastar a minha condição de "ré primária", nem a minha juventude com bobagens! Especialmente no Iraque.
Eu, heim... É como diz o ditado: "papagaio que acompanha João-de--barro vira ajudante de pedreiro" e eu não tô aqui pra encher as minhas mãos de calo e nem sujas as minhas roupas de reboco!
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