MINHA VIDA NO IRAQUE, NOS TEMPOS DE SADDAM HUSSEIN- CAPÍTULO 4
Capítulo 4: a ida às compras que resultou em correria e tomatadas
Em
1987 o mundo era bem diferente do que temos hoje. A comunicação era muito
precária. E tudo ficava bem mais complicado quando a vida tinha que ser vivida
num país governado por um ditador e que, além de tudo, estava em guerra.
Não
era um tempo em que os produtos estrangeiros podiam ser comprados em qualquer
supermercado ou lojinha brasileira até no interior desse nosso Brasilzão.
A China havia iniciado seu processo de
abertura econômica em 1978, com Deng Xiaoping, presidente que ficou com a
incumbência de transformar a economia chinesa, tirando-a da condição de
economia agrária e elevando-a ao nível de potência industrial. Obviamente, o
país pretendia se abrir para a iniciativa privada, como o fez, mas sem deixar
escapar a rígida centralização e o controle governamental na economia. Deu no que
temos hoje: a China vai se tornando a grande potência econômica do século XXI.
Ocorre
que, em 1987, esse processo de abertura estava sendo feito de acordo com a
famosa paciência chinesa: cuidadosa e gradual. Sem a precipitação e o
entreguismo exigido pelos neoliberais ávidos pelo lucro a qualquer custo, que seriam impostos ao mundo pelo Consenso de Washington, que se realizaria em 1989, jogando o mundo na atual selvageria capitalista que ampliou a globalização das mercadorias, mas trouxe consigo um vertiginoso empobrecimento da população mundial.
Sem acesso às quinquilharias que hoje estão disponíveis mundo afora, as nossas investidas nos Duty free shop dos aeroportos e em nossas viagens pelo Iraque eram insanas! Afinal, éramos jovens e, naquele momento, esse consumismo fazia sentido para nós.
Assim sendo. ficávamos
sempre à caça de produtos estrangeiros, cujos preços coubessem em nossos
orçamentos, para presentear nossos familiares aqui no Brasil. Essa era a nossa
chance de, pelo menos, fazer bonito frente à parentada com os presentes “importados”.
Pode-se dizer que éramos uma espécie de garimpeiros de bugigangas!
E
foi nesse contexto que ficamos sabendo que havia um “souk” (uma espécie de feira, mais parecida com um camelódromo, onde
se vende de tudo um pouco) numa cidadezinha localizada ao sul de Nassiryah. Ficamos
sabendo que lá poderíamos comprar tecidos de seda pura chinesa, pintados a mão,
a um preço bem interessante para nosso bolso.
Ficamos animadíssimos
para visitar a cidade e o souk na
próxima sexta-feira. Ao invés de irmos para Nassiryah, como fazíamos quase
todas as sextas-feiras, iríamos à cidade de Souk Al Shouwiouki.
Eu fazia planos de
comprar tecidos para as amigas que estavam no Brasil e uma seda bem bonita para a minha mãe e para a minha
irmã.
Eram
cerca de 8 e meia de uma ensolarada manhã de sexta-feira quando embarcamos para
a aventura de conhecer mais um pedacinho do Iraque, numa viagem que duraria,
aproximadamente 50 minutos. E lá fomos nós.
No
caminho, como sempre acontecia, em nossas investidas pelas estradas iraquianas,
sempre deparávamos com dezenas de táxis que levavam os caixões, recobertos pela
bandeira iraquiana, com os corpos dos soldados mortos em combate, para serem
entregues às famílias, que receberiam em troca da vida de seus filhos, a
bandeira do país e uma medalha de agradecimento do governo, como é praxe nesse tipo de insanidade que chamamos de guerra.
Como
a cidade de Souk Al Shouwiouki se
localizava mais próximo da zona de combate, a quantidade de jovens mutilados,
bem como dos táxis “funerários” eram mais numerosos na paisagem.
Chegando
a Souk Al Shouwiouki vi que era uma cidade bem menor
que Nassiryah e que estava ainda mais abandonada pelos poderes constituídos do
país.
Quase não
havia rua asfaltada e o Souk da cidade era bem menos organizado que o de
Nassiryah. Ao chegar o motorista estacionou na rua paralela à entrada da feira,
para que descêssemos do ônibus e fôssemos direto às compras.
Eu fui uma das últimas pessoas a desembarcar e já ia encaminhando para o encontro dos demais brasileiros, quando vi que todos corriam em direção contrária, assustados, querendo entrar afoitos no ônibus. Não tinham passado nem 5 minutos do desembarque e o furdunço já estava formado!
Eu queria
saber o que acontecia ali e, quando me virei de costas para perguntar, senti
que algo me atingira às costas, molhando minha blusa branca. Eu só vi quando a Laura,
professora de inglês (que depois se tornou minha comadre, dando-me a honra de
batizar aquela lindeza a quem ela e o Gotardi chamaram de Mariana) me puxou pelo braço e me fez correr
de volta ao ônibus.
- Corre... Eles estão nos jogando pedras e frutas podres. Não nos querem aqui! Laura me disse ofegante.
Depois que
todos nós conseguimos nos acomodar, o intérprete palestino que nos acompanhava
tentou explicar a situação.
Segundo ele,
as mulheres da cidade se sentiram ofendidas com as nossas roupas ocidentais. A cidade
abrigava uma população muçulmana xiita mais ligada aos rígidos preceitos do
Alcorão e, embora não fossem obrigadas a cobrir o rosto ou usar a habaia
(chador), acharam que estávamos desrespeitando o islã, por não cobrirmos os
cabelos e deixar partes dos nossos corpos à mostra.
Um detalhe:
nós NUNCA usamos short, minissaia, roupas decotadas ou qualquer roupa que pudesse
trazer algum desconforto para nós ou para o povo iraquiano, fora dos domínios
da Vila Sifão.
A nossa
vila e todas as vilas brasileiras e as demais, onde viviam outros estrangeiros
espalhadas pelo país, eram tratadas como espaços internacionais. Havia acordos
assinados com os respectivos governos acerca da situação. Além do mais, no
governo de Saddam não havia imposição em relação às vestimentas das mulheres.
Era comum,
por exemplo, haver painéis gigantescos com a figura do ditador nas entradas e
saídas de todas as cidades do país. Nessas imagens, quando retratadas, as
mulheres da família Hussein sempre se apresentavam com roupas ocidentais. Em Bagdá
as jovens andavam pelas ruas vestidas com calças jeans, sem a habaia (chador)
para encobrir as mesmas.
Esse tipo
de assédio só terminou quando descobrimos que, se fôssemos armadas com
sobrinhas e guarda-chuvas e empunhássemos
nossas “armas”, quebrando-as no lombo dos sem-vergonha, eles não
revidavam. Algumas das mulheres da vila usaram esse artifício algumas vezes e eles passaram a temer a humilhação de
levarem uma surra de mulheres, na rua, em plena luz do dia. Claro que era um
saco carregar sombrinhas num país desértico, que chove poucas vezes num ano,
mas passamos a ter sossego para andar desacompanhadas pelas ruas da cidade a partir daí.
Quanto ao tratamento recebido em Souk Al Shouwiouki naquela visita desastrada, a Mendes Jr. fez uma reclamação às autoridades. Em decorrência dessa reclamação
fomos convidados a voltar à cidade para “tirar a má impressão” e para que eles
se desculpassem.
Voltamos
duas ou três semanas depois.
Vocês
se lembram de que eu lhes disse que o sul do Iraque é reduto dos muçulmanos
xiitas, não é? Lembram-se de que eu falei que Saddam era sunita e que perseguiu
e matou muitos xiitas, por vê-los como inimigos a serem abatidos?
Pois
é... Resolvemos aceitar o convite governamental que era quase uma intimação.
Voltamos
a Souk Al Shouwiouki e entramos, muito
ressabiados no Souk da cidade, com
receio de levar outra tomatada podre nas costas (da qual me lembro do barulho e
da meleca que se transformou minha blusa branca). Entretanto, qual não foi a
nossa surpresa...
E não é que as pessoas da feira, especialmente as mulheres que lá trabalhavam nos
receberam com sorrisos? Eram sorrisos claramente forçados, mas elas tentaram nos agradar o tempo
todo. Uma delas, que vendia uma espécie de pão sírio (que os brasileiros
chamavam de orelha de elefante, por
serem arredondados e do tamanho de uma pizza grande) puxou levemente a barra de
minha saia vermelha e me perguntou:
-
Barasil?
-
Sim. Somos do Brasil.
-
Ah... Barasil jamile (Brasil é bonito)...
E
apontando para a minha roupa repetia:
- Jamile... Very jamile...
Pois
é... Por "livre e espontânea pressão" fui elogiada como nunca o fui em nenhum outro lugar. Acho que
nem aquelas roupas top, que a Gisele Bündchen desfilava nas fashion week da vida receberam mais elogios que a minha roupa naquele dia. Elogios
que sempre me fazem mal quando me lembro, não por saber que eles não eram
sinceros. Não eram mesmo! Não podiam ser! Não tinham mesmo que sê-lo! E nem era pelo fato de aquelas pessoas não gostarem
de nossos hábitos, de nossa moda, de nosso jeito de ser.
Sempre
me pego pensando a que tipo de humilhação e de violência elas foram submetidas
para “mudar de opinião" sobre nós”. Essa é uma ideia que me veio depois,
quando já estava no Brasil, mais madura e inteirada da realidade do mundo, e
rememorei esses momentos.
E foi de Souk Al Shouwiouki que eu trouxe a seda chinesa, pintada a mão, que a minha mãe usou para fazer o vestido que ela usou em meu casamento com o Elias, que – como já contei no capítulo 2 – conheci lá no Iraque.
Enfim...
Um dia e uma visita que poderiam ter sido lindos, mas que me trazem uma grande melancolia,
sempre que me lembro deles. Não pela tomatada nas costas e nem pelo vexame de
ter que me abrigar, às pressas, como uma fugitiva, num ônibus por causa do incômodo que nosso jeito de ser causou naquela gente oprimida,
sofrida e desamparada. É a melancolia de saber que, assim
como os iraquianos daqueles tempos, todos somos totalmente frágeis e indefesos, quando
estamos sob o jugo de um tirano.
Choque cultural, agressão, manipulação comportamental.
ResponderExcluirQue aula presencial, mestra!
Abraços.
E foi, viu? Foram muitas e muitas aulas naquele lugar. Tenho um carinho enorme por aquele povo!
ExcluirÓtimo relato! Viajei nas suas lembranças.
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