LAMA, VIDAS E HISTÓRIAS
Os Geógrafos do passado foram muito felizes quando conceituaram o espaço que damos o nome de "lugar". Para a Geografia, "lugar" é aquele espaço onde se constroem relações de afetividade. Nesse sentido, o que é um lugar para uma pessoa, pode não sê-lo para outra.
Sou Geógrafa e, desde quinta-feira, muitas lembranças me vêm sobre um lugar muito, muito especial para mim: a cidade de Mariana, em Minas Gerais. Aquele sempre foi um lugar para mim.
Enquanto a família do meu pai teve sua origem em Ouro Preto, boa parte da família de minha mãe nasceu, viveu ou ainda vive na cidade de Mariana. Nunca morei na cidade, mas era aí que eu e minha irmã passávamos praticamente todas as nossas férias escolares, desde que éramos muito pequenas e mal sabíamos caminhar. E assim foi até a juventude.
Centro histórico de Mariana (MG) - Acervo pessoal
Pra mim, desde aqueles tempos, jamais houve uma praça mais linda que “o jardim” de Mariana.
Tantas histórias! Tantas lembranças! Amigos, amigas, namoricos, carnavais, semanas santas, procissões...
Mas justo no mês do meu aniversário. Pior. Bem próximo dele, uma tragédia se abateu sobre o “meu” lugar. Mesmo depois de me certificar de que os parentes estão todos bem, incluindo os que trabalham na mineradora, e que a cidade não foi, fisicamente atingida, fiquei meio aérea, sem conseguir reagir ao que vi e ouvi na TV.
Praça Central de Mariana, chamada, carinhosamente pelos marianenses simplemente de "Jardim"
(Acervo pessoal)
Desde que soube do rompimento das barragens da Samarco que destruiu o Distrito de Bento Rodrigues e outros subdistritos da cidade histórica de Mariana, no fatídico dia 05 de novembro de 2015, uma história não me saiu da cabeça e ela tem uma profunda relação com o que aconteceu no "meu" lugar.
Não tenho certeza de que o resto do Brasil sabe do que vou relatar, mas durante o Regime Militar, quando se efetivou o plano de ocupação da Amazônia, cujo mote era “ocupar para não entregar”, o governo investiu na construção de hidrelétricas, de estradas e incentivou a criação de projetos de mineração na região. Para tanto, foram levados trabalhadores de todas as partes do Brasil e para eles foram construídas verdadeiras cidades dentro da mata. As vilas construídas por mineradoras ou pelas construtoras das hidrelétricas no norte do país, que ainda estão espalhadas pela região - hoje, muitas abandonadas - são bem estruturadas. Contam com hospitais, bancos, clubes, jardins e casas bem construídas e amplas no estilo norte-americano. Algumas são de dar inveja a muitos condomínios de classe média alta do centro-sul do país.
Uma dessas vilas foi construída em meio à linda e pouco devastada Floresta Amazônica amapaense para abrigar as famílias e os trabalhadores da mineradora ICOMI, que explorava o manganês do Amapá na Serra do Navio.
Fonte: https://sebodomessias.com.br/imagens/produtos/28/282227_305.jpg (acesso 09 de nov. 2015)
Na Vila da Serra do Navio vivia um professor de química (*) que conheci, na cidade de Santana em 1992, quando o mesmo já havia se mudado com a família para a capital Macapá, pouco antes da total desativação da atividade mineradora na região.
Como se espera, a vida em vilas como a da Serra do Navio transcorre de modo calmo e em segurança. Todos se conhecem e buscam alguma diversão nos finais de tarde, tanto para movimentar um pouco a rotina, quanto para dar um tempo até que o calor, sempre presente e escaldante, dê uma aliviada para que se possa dormir com algum conforto. Nas vésperas dos fins de semana, as famílias se juntavam nas áreas de lazer e de restaurante do que era denominado a "Casa de Hóspedes" dessas vilas para comer, para umas partidas de boliche, de sinuca, de tênis, de vôlei ou simplesmente para jogar conversa fora.
Vista aérea da Vila da Serra do Navio (AP)
Fonte: http://revistaecologico.com.br/esite/kcfinder/upload/images/Serra-do-Navio.jpg (acesso 09 nov. 2015)
Num desses fins de noite, esse professor resolveu levar a família para a Casa de Hóspedes e assim encontrar os amigos após o trabalho. Enquanto estavam lá, um problema elétrico deu origem a um curto circuito que queimou toda sua casa. Não houve tempo para salvar nada. Na vila ninguém andava com documentos. nem dinheiro era necessário... Tudo era fornecido pela empresa e, o que fosse consumido acima do previsto, era registrado e descontado em folha. Por isso, após o incêndio, eles ficaram apenas com as roupas que usavam naquele dia e, por ironia, com as chaves da casa destruída.
Padrão geral das casas da Serra do Navio (AP)
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgmVkyo3KJGfN1YQTkNUwJbwR3aWkNVh9EjPzlUigMmbtD5hz-8p2t8GqFl15zG7cNqy5SklGnJ3_gR47i4g3dVSbkaIOF7PYI3j8IwE_hvBzck8OjgZEgmcZguNlxsg2uuAoCH_V5GxA5I/s1600/Imagem+9+serra+do+navio.jpg (acesso 09 nov. 2015)
Tempos depois, quando eles já tinham sido alocados em outra residência, com novos móveis, roupas, brinquedos, eu o reencontrei na sala dos professores de uma escola da cidade de Santana, próximo à Macapá. Em nossa conversa eu lhe disse:
- Poxa, cara, que sorte que vocês se salvaram! Ainda bem que a companhia deu toda a assistência e vocês estão bem de novo.
Ele respondeu:
- Sabe, amiga, no que se refere aos bens materiais, hoje estamos melhores que antes do incêndio. As pessoas ajudaram. Colegas de trabalho fizeram vaquinha para comprar TV, geladeira e fogão novos e muito melhores e sofisticados que aqueles que eu tinha antes. Tive que dispensar itens enviados pela empresa, porque não tinha onde colocar ou porque acabaram duplicados.
Foi quando outro colega professor, em tom de chacota, lhe disse:
- Ah... Então esse incêndio foi uma dádiva para ti. Acho que vou mandar incendiar a minha casa também.
Sério e meio constrangido, o professor respondeu:
- Tu nem deves pensar nisso, amigo! Nem de brincadeira deves pensar assim. O incêndio levou algo que não tenho como recuperar: levou parte importante de nossa história. Não tenho mais nenhuma foto do meu casamento, nem dos meus filhos bebês, nem de nossa chegada ao Amapá. Perdi fitas com os primeiros passos do meu filho mais velho e do batizado da mais nova. Perdi as cartas e cartões de natal que eu e minha esposa trocamos enquanto namoramos e os presentes para o dia dos pais que as crianças fizeram para mim na escola. Vou dizer-te a verdade do fundo de minha alma: assim como eu, tu darias tudo o que recebeste para ter de volta os registros de tua história. Não sabemos por quantos anos teremos memória suficiente para relembrar o que vivemos. Tu sempre poderás mostrar aos teus netos a foto de teu casamento, de tua casa, de teus filhos quando bebês... Podes sempre comprovar o que dizes sobre ti. Eu e minha família não teremos a mesma chance. É isso que eu lamento. Estamos tratando de criar novas histórias e de registrar e guardar em diferentes lugares o que estamos criando, mas sem essas referências, tu ficas meio sem chão.
Nesse momento, a sala dos professores silenciou. Nenhum de nós tinha a real dimensão do que significa perder as nossas referências históricas. Acho que ninguém reflete sobre isso, até que viva situação semelhante pessoalmente.
Relembrando essa história e ao tomar ciência do ocorrido em Mariana é que fui em busca de informações e meios de ajudar aos diretamente atingidos pela catástrofe. Fiquei muitos meses sem assistir à TV, mas ao saber da devastação do “meu” lugar, não me contive. Precisava entender o que se passava.
A extensão do desastre e os efeitos na paisagem
Fonte: http://s2.glbimg.com/Uy07TY67ZXv05WwV4N2_v-fRI2I=/s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2015/11/06/2.jpg
Ouvindo os sobreviventes e vendo a extensão do desastre, não é exagero afirmar que poderia ter sido muito pior. Se os rompimentos das barragens da Samarco Mineradora tivessem acontecido de madrugada, hoje estaríamos lamentando a perda de centenas de vidas, engolidas pelo lamaçal.
O estado de MG está em choque, não só pela dimensão do desastre, mas por sabermos que esse não foi o primeiro e, caso se confirmem as primeiras avaliações acerca de outras barragens do estado, não será o último. Falta fiscalização. Falta comprometimento de autoridades, empresas e organismos governamentais que se ocupem de cuidar da vida das pessoas, do meio ambiente e da produção mineral das Minas Gerais, que – como o nosso nome indica – é o carro-chefe da economia local.
No caso de Mariana, embora o número de vítimas fatais tenha sido menor do que a extensão da tragédia sugere, há uma questão sobre a qual poucos falam: registros de histórias de vida se perderam para sempre. Cidades e vilas foram extirpadas num só golpe. De uma hora para outra tudo o que as pessoas puderam fazer foi correr. Sem nada. Sem documentos. Sem pertences pessoais. Salvando-se da lama. Apenas sobrevivendo.
Para os que acreditam que a vida é o essencial, que tê-la preservado é o mais importante e que os objetos e pertences poderão ser readquiridos posteriormente, pode servir de consolo por algum tempo. Pelo menos até que se saia do estado de choque. Mas depois é que as coisas ficam sombrias.
Bento Rodrigues antes da tragédia.
Fonte: http://www.hojeemdia.com.br/polopoly_fs/1.357990!/image/image.jpg_gen/derivatives/landscape_490/image.jpg
Quando se retoma a realidade entende-se que perdemos parte muito importante para qualquer ser humano: perdemos parte de nossa história de vida. E isso é muito mais grave do que parece.
Não a toa que sempre vemos pessoas abandonadas pelos pais biológicos ao nascer e, mesmo tendo sido adotados por famílias amorosas, mais cedo ou mais tarde, buscam conhecer suas origens. Não significa que sejam infelizes ou ingratas. Conhecer a própria história é o alicerce para a construção do indivíduo. É tão importante para a construção e manutenção do ser, quanto a comida e a água o é para a manutenção do corpo. Não há como prescindir disso e continuar sendo uma pessoa completa.
Por isso o vazio vai tomar conta dessas pessoas que, além de perderem o “seu” lugar, viram escapar de si os registros de sua história de vida. E isso, por mais que ocorram as reconstruções, reposições de bens materiais, indenizações... Não tem volta.
Sim. A tecnologia pode minimizar esse impacto, afinal, as fotos estão na internet e podem ser acessadas a qualquer momento, assim como os vídeos. Mas e aquele cartão e o presente confeccionado pelas crianças para o dia dos pais? E aquele bilhetinho escrito em letras inseguras no primeiro dia de aula, logo depois da alfabetização? E a roseira que havia acabado de florir?
Ahhh... Bobagens! Supera-se com o tempo. Se nada tivesse acontecido, ninguém ia se lembrar de nada disso. Muitos dirão.
Tá certo. Mas aconteceu. E as tragédias amplificam a sensibilidade. Além do mais, vidas foram salvas, mas vidas também foram perdidas.
Ainda que continuemos ouvindo o lamento do poeta, a mineração vai continuar nas Minas Gerais. Ela precisa continuar, sob pena de condenar pais e mães de família ao desespero causado pela miséria. É ela que sustenta famílias e cidades, enquanto leva para longe as nossas “montanhas” e muda a nossa paisagem. Isso não há como mudar em médio ou longo prazos. Dependemos disso. Assim é no mundo inteiro onde essa atividade se desenvolve. Os trens e navios continuarão levando nossas serras, mas não podem levar nossas histórias de vida. É sim exigir demais de nós. Isso é sim nos tirar a essência.
Há que se cuidar das pessoas,
acima de tudo. Não é justo submeter-nos a riscos que podem ser evitados. Nós, mineiros, podemos
ficar sem a terra, podemos ficar sem as serras, mas se não nos tirarem a essência o nosso coração resistirá.
(*) Optei por omitir o nome do professor, já que não o vi mais desde 1994 e não tenho a devida autorização para fazê-lo nesse espaço.
Nossa Sílvia, que texto! Parabéns
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirChamam de acidente o que aconteceu em Bento Rodrigues, eu chamo de crime e não podemos deixar que caia no esquecimento. Não há o que fazer para resgatar o que foi perdido, mas há como nos unir e não deixar que força do tempo e do interesse financeiro se sobreponham à dor de quem nunca teve voz.
ResponderExcluirRoní Barbosa.
Obrigada, amigos. É muito importante pra mim os comentários de vocês.
Excluir