SERRAS, CORDILHEIRAS E "MINEIRIDADES"



O ano era 2014. A Copa do Mundo acontecia no Brasil e, sem que soubéssemos, o esperado evento nos preparava alguns vexames históricos, dentro e fora dos estádios, sobre os quais não nos atrevíamos a imaginar, nem em nossos mais tenebrosos pesadelos.

O fato é que, eu já havia planejado levar minha família ao Chile. Apoiando-me nos preços extorsivos dos ingressos para os jogos e, quem sabe uma intuição materna, que, secretamente me impeliu a tirar meus filhos dessa euforia transmutada em decepção, depois do fatídico sete a um da Alemanha sobre a "Seleção Canarinho", achei que seria um bom momento para realizar o sonho de conhecer os Andes. 

Eu guardava em mim uma necessidade de conhecer aquelas montanhas "pessoalmente". 

O primeiro contato foi pela janela do avião. E lá estava ela! Linda, imponente e desafiadora: a Cordilheira dos Andes. 



CORDILHEIRA DOS ANDES - SANTIAGO 
(Acervo pessoal) 


Em volta de seus cumes encobertos pela neve, uma névoa fina tentava ocultar-lhe os contornos, como se a escondesse de mim. Parecia protegê-la dos meus olhos e de minha alma ávidos por conquistar-lhe a intimidade e descobrir seus segredos mais profundos. 

Um turbilhão de sentimentos e um transbordamento de emoções múltiplas me arrebataram. Talvez fosse apenas a manifestação de uma característica típica dos geógrafos como eu, que conseguem se comunicar com as paisagens, extrair-lhes informações, reconhecer suas vulnerabilidades, desvendar seu passado e suas perspectivas futuras. 

Ou seria coisa de mineiro nascido nessas terras itabiritenses encravadas no Quadrilátero Ferrífero no coração de nossas Minas Gerais? Seria o convívio diário com a robustez das rochas que despontam entre as plantas, como se tentassem crescer e se deixar balançar pelos ventos, como fazem as árvores? Quem sabe? 



AFLORAMENTO ROCHOSO NA SERRA DA SANTA 
(Itabirito - Acervo pessoal) 

O certo é que eu sou mineira, nascida e educada em uma grande família de classe média baixa. Sendo assim só conheci o mar aos 19 anos, quando já podia pagar pela viagem com meu salário. 

Quando me vi frente a frente com aquele "lagoão" emudeci, tamanho foi o meu deslumbramento. Entretanto, as sensações daquele momento eram uma mistura de encantamento e medo. Achei que suas ondas, além de barulhentas, eram agressivas. Se eu me aproximasse um pouco mais, era puxada por elas e levada para áreas mais profundas, independentemente de minha vontade. 

Elas, as ondas, se apresentaram para mim, de modo violento. Iam chegando sucessivamente e, atrevidas iam impondo uma intimidade com o meu corpo, que eu não me lembro de haver lhes permitido. 

Já o encontro com a Cordilheira me trouxe lembranças desconcertantes da infância. 

Ao contrário da maioria das crianças que tinham animais de estimação, eu "tinha" uma montanha. 
Quando criança, nós não tínhamos casa própria, por isso, vivíamos nos mudando. Eu adorava cada mudança e penso que isso me ajudou a construir certo desapego por aquelas coisas vistas como "definitivas e estabelecidas" e me ensinou a não ter medo dessas alterações inesperadas. Aliás, acabei desenvolvendo certo gosto pelos traslados e transformações em todos os aspectos da vida: das mudanças de casa, de trabalho, de cidade, e de coisas mais simples como, por exemplo, o meu cabelo, que já teve todas as cores, tamanhos e cortes. Fato é que, até hoje, nenhum tipo de mudança me intimida. 

Pois bem, numa dessas mudanças de casa, fomos morar no bairro Bela Vista, em Itabirito. A casa tinha 2 quartos, sala, cozinha, banheiro e um quintal relativamente grande. Essa casa, em particular, me veio com um presente. Agregada à cozinha havia uma varandinha que me abria o horizonte com a vista mais linda de que me recordo dos meus tempos de criança: a minha montanha. Imponente, recoberta por pastagem entremeada por árvores que se esparsavam pelo terreno onde se localizava a fazenda do Sr. Raimundo. Jamais conheci a fazenda e posso afirmar que ela não era o objeto do meu interesse. Na verdade, achava que ela era uma intrusa que ocupava, inadequadamente, aquele meu lugar sacrossanto. 


AS "MONTANHAS" DE ITABIRITO 
(Fonte: http://static.panoramio.com/photos/large/65432154.jpg - acesso em 30 nov. 2015) 


Para mim, do alto dos meus 9 anos de idade, aquela era mais que uma montanha. Era minha guardiã. Linda e misteriosa em seu silêncio, ela me permitia contar-lhe meus mais escondidos segredos infantis, na certeza absoluta de que jamais seriam revelados. Sentia-me protegida por ela. Era como se aquela montanha fosse uma muralha que impedia a chegada de qualquer coisa ruim em nossa casa. Pode parecer loucura, mas eu me sentia dona da montanha onde ficava a fazenda do Raimundo. 

Cresci assim, tendo enorme carinho e respeito pelas montanhas de Minas. Para estreitar esses laços é que sempre preferi viajar de ônibus por nossas estradas, porque, sendo mais altos, esses veículos me proporcionavam uma visão bem mais vantajosa das paisagens e, especialmente, das nossas serras. 


Já adulta, fui, meio que por acaso, "empurrada" para o curso de Geografia. Coisas do destino, eu acho. Queria continuar sendo professora e, para tanto, meio que de forma aleatória, escolhi a Ciência Geográfica. Curso muito mais difícil do que pode parecer aos menos informados, principalmente para uma jovem como eu, cujo ensino médio (o antigo curso normal, no qual o currículo era complementado por aulas de tapeçaria, corte e costura, puericultura e economia doméstica) tentou preparar para duas coisas: ser professora primária e ser dona de casa. Sem muito êxito no segundo caso! 

Assim sendo, fui tomada de grande pânico nas primeiras aulas de geomorfologia – a ciência que estuda o relevo. Coisa difícil! Nomes estranhos, desconhecidos. Até que entramos no estudo da Cordilheira dos Andes e fui arrebatada pelo fascínio ao conhecer sua geologia e pela raiva de ser reprovada na disciplina, na primeira vez que a cursei. 

Hoje entendo que a professora da disciplina – considerada uma das mais rigorosas do Instituto de Geociências da UFMG nos anos 1980 – não podia nos dar moleza. Afinal, trata-se conhecer, com profundidade, parte importante dessa herança que recebemos quando fomos destinados a viver nesse planeta. 



A "CONQUISTA" DO VALE NEVADO... 
(Acervo pessoal) 

Mas é como diz o mineiro Beto Guedes: "Tudo que move é sagrado". Concordo com ele. Imperceptivelmente para nós, na maior parte do tempo, as montanhas não são paisagens estáticas. Crescem ou diminuem com o passar do tempo. As montanhas jovens como os Andes se movem bruscamente. Como todo jovem, elas vivem os rompantes típicos da juventude, manifestando sua irritação com tremores de terra e sua inquietude "hormonal" com as grandes explosões vulcânicas. 

As velhas e desgastadas montanhas de Minas, diferentemente, se movem com a calma daqueles que, por já saberem seu destino, caminham lentamente apreciando cada detalhe do seu entorno. E é isso que mais me fascina. Todas guardam em si os segredos e as histórias de todos os seres vivos que passaram por elas, ao longo de algumas centenas de milhões de anos. 
Impossível não contemplá-las em seu silêncio e beleza! Só por esse motivo já deveriam ser reverenciadas como templos sagrados que são.

Comentários

  1. A menina e a montanha. Acho q daria um bom conto.
    E é tão bom viajar, inclusive através das palavras.

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  2. Obrigada Lili. Gosto da ideia, viu? Um abraço e obrigada pela visita.

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  3. Oi silvia, este assunto tb me agrada. Montanhas! Que delícia. Pra mim é fonte de inspiração e descanso. Sempre recarrego minhas energias respirando um ar das montanhas de itabirito e moeda. Presente de Deus. Num é? Adorei este espaço. 😉😉😉

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  4. Oi silvia, este assunto tb me agrada. Montanhas! Que delícia. Pra mim é fonte de inspiração e descanso. Sempre recarrego minhas energias respirando um ar das montanhas de itabirito e moeda. Presente de Deus. Num é? Adorei este espaço. 😉😉😉

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